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Débora Miranda

"Vou cair mil vezes e me levantar mil vezes", diz Formiga, da seleção

Débora Miranda

30/01/2018 05h00

Referência na seleção brasileira de futebol, duas vezes vice-campeã olímpica e uma vez vice-campeã mundial. A única jogadora de futebol DO MUNDO (!) a ter participado de seis Jogos Olímpicos, TODAS (!) as edições desde que a modalidade entrou na competição. Seis Copas do Mundo (!) no currículo.

(Team Pics/PSG/Reprodução)

Talvez você não saiba quem é Miraildes Maciel Mota, mas se gosta de futebol com certeza já torceu muito por Formiga, a meio-campista que brilhou por duas décadas na seleção e que acumula em sua vida profissional muito mais do que títulos importantes. Em campo e fora dele, sempre mostrou engajamento e coragem para batalhar pelo futebol feminino.

Aposentada da seleção brasileira –"Não tinha mais paciência para certas coisas"–, ela joga atualmente pelo Paris Saint-Germain e está prestes a completar 40 anos, mas não pensa em parar. Quer voltar ao Brasil e se aposentar só depois de vestir novamente a camisa dos times que foram importantes em sua carreira: o São José e o São Paulo. Sonha em ser técnica e planeja abrir uma escolinha de futebol.

Formiga lembra das dificuldades que enfrentou no início –"o preconceito me motivou ainda mais"–, mostra como o esporte é capaz de transformar vidas –"faz de nós seres humanos melhores"– e revela que, no futebol, as mulheres não são tão unidas na hora de lutar pela categoria.

Leia, abaixo, trechos da entrevista que ela deu, de Paris, ao "Extraordinárias":

Como você se sente sendo referência para as meninas que querem jogar futebol e sonham em ser atletas profissionais?

Eu fico feliz em transmitir algo tão positivo para essas meninas, que hoje podem acreditar que é possível realizar seus sonhos. Muitas sabem das dificuldades de chegar aonde eu cheguei. [É importante] ser exemplo para elas, que não têm mais só o futebol masculino. Porque, quando eu comecei, não tinha isso de se espelhar em outra mulher. Muitas meninas tinham dentro de casa o preconceito. E, hoje, o crescimento do futebol é grande. Acredito que a cada dia pode melhorar. E essas meninas podem ter a oportunidade de jogar, de serem profissionais e de terem o respeito que merecem.

Imagino que quando você começou deve ter sido bem mais difícil. Você enfrentou preconceito na sua família?

Enfrentei da parte dos meus irmãos. Hoje, com outra cabeça, eu entendo que era mais preocupação do que machismo. Até porque eu era a única mulher que jogava no meio de vários meninos. Eles tinham preocupação de alguém fazer alguma maldade comigo. Mas graças a Deus passou. Eles viram que era o que eu queria e consegui realizar meu sonho. Já minha mãe sempre me apoiou, esteve ao meu lado. E é assim até hoje. Sempre uns contra, outros a favor. Sei que ainda existe preconceito, mas antigamente era bem pior.

Isso te atrapalhou?

Isso, na verdade, me motivou ainda mais. Acredito que nada na vida seja por acaso. E se eu passei por isso é porque tinha de passar, tinha de me fortalecer para enfrentar os problemas da vida. Eu saí muito cedo de casa, aos 12 anos, e tudo isso me fez crescer.

Você enfrentou muitas batalhas até se tornar profissional. O que diria para essas meninas que sonham em ser jogadoras?

Elas têm que enfrentar as dificuldades que, com certeza, vão aparecer. Se é isso o que realmente elas querem, têm que acreditar e persistir mesmo. Ninguém vai fazer nada por elas. Eu sempre falo: vou cair mil vezes e me levantar mil vezes, enxugar as lágrimas e continuar em busca do meu sonho.

Você acredita que o esporte pode transformar a vida de uma mulher?

Sem dúvida, com certeza. Acredito sim! E não só na parte da saúde. O esporte faz de nós seres humanos melhores. Nos dá disciplina, muda nossa cabeça em todos os sentidos. As pessoas pensam muito em dinheiro, mas isso não é tudo na vida. O esporte te toca, de certa maneira te dá condições de enxergar realmente a vida, pelas dificuldades que tem. Eu me tornei uma pessoa bem melhor do que antes.

Você acha que o futebol, por ser um esporte coletivo, tem o poder de unir as mulheres?

Eu acho. Mas o mundo do futebol é um pouco difícil, não tem a união que deveria ter. Eu acho que tanto o feminino quanto o masculino deveriam ser unidos e brigar por um ideal. Mas infelizmente a gente não tem isso.

Qual foi o maior obstáculo que você enfrentou na sua vida?

Eu acho que foi quando eu machuquei meu joelho, porque estava próximo do Mundial. Não lembro bem o ano, acho que foi 2011. Aquele momento me fez pensar bastante. Porque quando você está bem, todos te elogiam. E quando você se machuca, perde um pouco desse prestígio. Então, é como se você fosse peça fundamental [para a equipe], mas só quando está inteira. Eu tive que superar isso, trabalhar a minha cabeça e saber que eu tinha valor não só quando estava bem.

Qual foi a maior conquista da sua carreira?

O Pan-Americano do Rio [em 2007, quando o Brasil ganhou o ouro]. A gente conseguiu lotar o Maracanã! Muitos falavam que a procura por ingresso para o futebol feminino seria pouca, mas a gente lotou o Maracanã. Para mim a maior conquista foi essa, ter aquele estádio cheio para ver o futebol feminino. Calamos as críticas.

(Rubens Cavallari – 26.jul.2007/Folhapress)

Tem muitas jogadoras brasileiras em times grandes da Europa, como o Barcelona e o próprio Paris Saint-German. Como é a estrutura do futebol feminino no exterior?

A dificuldade do futebol feminino é mundial. É claro que aqui na Europa tem uma estrutura bem melhor em relação a salários e também mais respeito. A dificuldade existe com relação à visibilidade e a ter espaço na mídia. Mas espaço para jogadoras brasileiras tem, e está cada vez mais fácil sair do Brasil, muitas vezes até antes de a jogadora chegar à seleção. Aqui não é mil maravilhas, mas há condições bem melhores do que no Brasil.

Qual é a sua análise do trabalho desenvolvido pelos clubes brasileiros?

Há muita falta de estrutura em alguns clubes. Existem campeonatos regionais que não têm nem ambulância no estádio, então, se alguma jogadora passar mal, nao tem médico. É uma falta de respeito muito grande. Gostaria que os clubes fossem melhorados para as suas jogadoras, que são seres humanos. Aqui, temos seguros, plano de saúde, tudo que no Brasil não tem e deveria ter. Isso fora o descaso das federações com o futebol feminino, que é lamentável. A melhora é muito lenta, precisa mudar até as condições dos campos. Eu sei que as dificuldades são grande, que quase não há patrocínio, mas quando se quer fazer alguma coisa, é possível fazer bem-feito. Lamento de coração que ainda existam clubes em que até para treinar as meninas têm dificuldades. Que não têm nem material.

A Hope Solo, goleira da seleção dos Estados Unidos, anunciou que quer se candidatar à presidência da federação de futebol dos EUA. Você acha que algum dia uma mulher pode ser presidente da CBF?

[Risos] A gente até dá risada, né? Se nem como atleta a gente tem essa aproximação ali dentro… Mas não é impossível. A gente tem que sonhar e tem que ir buscar, mesmo. Fico feliz que nos Estados Unidos tenha essa possibilidade, que eles incentivem as atletas a estarem junto da confederação. Porque a gente vive o futebol feminino, sabe o que é e tem ideia do que as meninas precisam. É preciso ter pessoas que saibam lidar com o futebol feminino, que saibam o que pode ser melhorado.

Se você fosse presidente, o que faria?

Ia ouvir os clubes e brigar para que eles tivessem futebol feminino. Começaria por aí. Além disso, [dividir os] patrocínios do masculino. De onde posso tirar deles para ajudar mais ainda no futebol feminino? Sei que é complicado, pois muitas empresas realmente não querem ajudar. Mas com pouco já dá para fazer muito coisa. É preciso ter interesse em melhorar. Por exemplo: o masculino tem vários patrocinadores que envolvem produtos para as mulheres também. Podemos trabalhar essa parte do marketing juntos. Mas, infelizmente, não se pensa dessa maneira, né? Falam que o futebol feminino não dá retorno, mas há oportunidade para que tenha essa retorno? Não!

Há algo que você queria conquistar e não conseguiu?

Queria conquistar a Olimpíada e o Mundial. Isso sem dúvida. Eu gostaria muito de, antes de sair da seleção, ter conquistado esses títulos tão importantes, mas infelizmente eles não vieram. Vontade nunca faltou, mas acredito que a primeira prata nossa já serviu muito [na Copa do Mundo de 2007]. Quem sabe eu não vou conquistar de outro jeito, né? Trabalhando ali com a seleção.

Você vai fazer 40 anos. Quais são seus planos profissionais?

Pretendo jogar mais três anos. Me sinto bem, treino do mesmo jeito, com a mesma vontade, a mesma alegria. Penso em fazer meu curso da CBF para ser técnica, quero ter minha escolinha de futebol no Brasil. Já que estou aqui e o Paris Saint-Germain abriu em São Paulo, penso em futuramente trabalhar pelo clube no Brasil. O meu sonho é ficar no futebol feminino. Apesar de aí não ter mercado bom, quero ajudar o futebol feminino, que foi o que me colocou onde estou. Mas, se surgir trabalho com os meninos, não vou dizer não. E trabalhar nos dois, melhor ainda.

Em que situação você está atualmente com o Paris Saint-Germain?

Tenho contrato até junho. Há a possibilidade de renovar por mais uma temporada. Estou analisando, porque já recebi outras propostas. Tenho aqui da Europa, dos EUA e do Brasil também. Mas não devo voltar para o Brasil agora. Creio que em mais uns dois anos eu volte para encerrar a minha carreira aí.

Onde você sonha em encerrar sua carreira?

Tem dois clubes. Queria muito jogar, se eu pudesse, nos dois. Um é o São José, clube por onde eu passei e conquistei vários título. O povo joseense realmente ama o futebol feminino. Me senti muito em casa, valorizada e amada por todos ali. E onde eu comecei, que foi no São Paulo. Quem sabe até lá eles tenham time profissional.

Como foi a decisão de se aposentar da seleção?

Eu pensei muito antes de tomar essa decisão. Algumas dificuldades de longos anos me fizeram sair. É difícil quando você não tem reconhecimento, não vê as coisas melhorarem. Isso foi me dando desânimo. E fora que era hora de dar espaço para outras meninas e buscar outras coisas para mim. Foram 21 anos dedicado só àquilo. E claro que o que mais pesou, infelizmente, é que essa, como já disse, não é uma classe tão unida. Não adianta só meia dúzia estar brigando. Eu não tinha mais como continuar. Não tinha mais paciência para certas coisas.

Depois da demissão da Emily várias jogadoras anunciaram a saída da seleção. Foi a gota d'água para vocês, que tinham tanta expectativa com relação ao trabalho dela?

Eu sou a favor do trabalho que ia fazer o futebol feminino evoluir no país. Foi a primeira oportunidade dada a uma mulher. Mas eu vejo que, quanto mais evolução o futebol feminino tem, eles [a CBF] cortam isso. Eles não deixam ter esse crescimento. Não sei realmente por quê. Eu sei que muitas meninas ficaram indignadas realmente, e eu, por ser mulher, vou defender sempre. Não sei o porquê da demissão. Mas espero que deem outra oportunidade, não só para ela, mas para outras profissionais que estão chegando ao futebol feminino.

Por que você acha que eles não deixam o futebol feminino crescer?

É uma pergunta que eu me faço. Jé existe o preconceito, ainda com uma confederação que não tem nem um departamento de futebol feminino… Acho que já começa daí. Você fica pensando se realmente eles querem que melhore ou não. Não sei qual é o medo. As mulheres no nosso país sofrem pra caramba para conquistar espaço. Temos que provar o tempo inteiro para esses caras que somos capazes de executar o trabalho que nos propusemos a fazer. É difícil.

Sobre a autora

Débora Miranda é jornalista e editora do UOL. Apaixonada por cultura. Acredita no poder transformador do esporte. Ginástica olímpica na infância. Pilates, corrida e krav maga na vida adulta. Futebol desde sempre. Corinthians até o fim.

Sobre o blog

Espaço para as histórias das mulheres no esporte, mostrando como a atividade física pode transformar vidas e o mundo. A ideia é reunir depoimentos sobre determinação, superação e empoderamento. Acima de tudo, motivar umas às outras. Vamos juntas?