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Débora Miranda

Precisamos falar sobre cheerleaders

Débora Miranda

20/04/2018 05h00

Uma polêmica iniciada nesta semana me chamou a atenção e me incomodou. Minhas companheiras de tantos debates feministas nas redes sociais estavam indignadas com a decisão da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) de colocar cheerleaders dançando em campo, na festa que marcou o início do Brasileirão. A iniciativa foi criticada, chamada de antiquada e machista. A CBF, acusada de expor as mulheres diante dos homens fãs de futebol, de transformá-las em objeto.

Cheerleaders do time argentino Boca Juniors (Reprodução/Instagram)

Outra discussão sobre o tema tomou as redes sociais quando o Boca Juniors, tradicional time argentino, anunciou em outubro passado apoio ao movimento Ni Una Menos, coletivo feminista que combate o machismo e a violência de gênero no país. Com isso, o clube decidiu, na época, tirar de cena suas cheerleaders, conhecidas como Las Boquitas. E recebeu forte apoio feminino, mesmo diante do lamento das próprias cheerleaders. "Elas podem arrumar trabalho melhor!", diziam na internet.

Não é novidade para ninguém que o machismo e a misoginia são realidades no futebol, apesar da luta constante das mulheres que frequentam esse meio –atletas, integrantes de comissões técnicas, jornalistas e torcedoras. Todo o mundo sabe disso, infelizmente. Mas essa análise funciona a partir da visão masculina. O preconceito, o assédio, a agressividade com termos chulos, a objetificação da mulher, tudo isso parte do comportamento do homem com relação a nós. Diante disso e tentando não mais nos sentir acuadas, reagimos. Tentamos nos proteger. Tentamos transformar a realidade.

Fazemos de tudo para fugir da exposição –do corpo, da sensualidade ou simplesmente de traços da nossa feminilidade. Não queremos dar brecha, queremos respeito. E tudo isso me fez pensar se a nossa postura de autopreservação extrema está nos levando a nos vitimizar e a nos fragilizar. Se o nosso discurso de querer igualdade e reconhecimento não está nos levando também a supor que mulheres como as cheerleaders sejam oprimidas pelo sistema sem nem considerar que elas podem estar nesse trabalho por uma escolha consciente.

Que elas podem não querer arrumar um emprego melhor. Que esse pode ser o trabalho de que elas gostam. Que podem estar felizes, orgulhosas, batalhando oportunidades profissionais, confiantes e cheias de autoestima. Que podem estar empoderadas. Num mundo em que pregamos "girl power", "meu corpo, minhas regras" e "lugar de mulher é onde ela quiser", deveríamos estar olhando para essas dançarinas simplesmente como seres frágeis e vítimas de um sistema machista que as colocou lá para expô-las como enfeites?

Homens e mulheres torcem profissionalmente nos Estados Unidos (Sam Wasson/Getty Images/AFP)

Tenho uma novidade para vocês: o cheerleading –nome que se dá à atividade de torcer em uma modalidade esportiva– começou exclusivamente com HOMENS, nas universidades americanas. Nos Estados Unidos, ainda hoje, é uma atividade tradicional e valorizada. Na verdade, torcer acabou virando uma prática esportiva, com direito a competições e tudo! Praticada por ambos, homens e mulheres!

No Brasil, óbvio, o cenário é diferente. Apesar de existirem grupos que seguem os passos do modelo americano de torcer e uma associação que formaliza essa prática, ser cheerleader ainda não dá tanto reconhecimento. Mas decidi procurar uma delas para ouvir e entender um pouco mais dessa arte que, pelo menos para mim, ainda é um pouco incompreendida.

A dançarina e professora de dança Giselle Moraes Consoli Polito, 36 anos, foi cheerleader do Corinthians até 2014. "Comecei a dançar com 15 anos. Fiz balé, jazz. Me formei em educação física por causa da dança, que é a minha paixão. Fui durante cinco anos cheerleader do Corinthians. Já trabalhei também em jogos de basquete da NBA aqui no Brasil, dancei na abertura da Copa e no encerramento da Olimpíada", conta ela, que faz parte da Cia. de Dança Panteras, de Osasco (Grande SP).

Ela conta que, para montar o time de meninas que torceriam pelo Timão, foram realizadas audições. Durante a semana, o grupo ensaiava arduamente a coreografia que seria apresentada no intervalo dos jogos, nos fins de semana. "Misturávamos dança com acrobacia, usávamos muitos elementos de ginástica artística. Fazíamos performances impactantes. Criamos um vínculo com a torcida, que sempre nos aplaudiu. Nunca houve falta de respeito."

Equipe de Cheerleaders do Corinthians, no estádio do Pacaembu (Eduardo Knapp – 8.ago.2010/Folhapress)

Naturalmente fica difícil, de dentro do campo, identificar a falta de respeito, mas quem frequenta a arquibancada sabe que ela existe. Por muito tempo, inclusive, existiu de forma agressiva contra as próprias torcedoras, com músicas ofensivas e opressoras. Mas por causa disso abandonamos nosso times, nossos jogos pelo país e pelo mundo, nossas convicções de que nosso lugar era ali, dentro do estádio? Nunca! Por que supomos então que essas dançarinas, que estão lá para fazer uma apresentação artística, que estão mostrando seu trabalho, o resultado do seu esforço, deveriam simplesmente desistir?

Giselle me contou que também tinha preocupação em ser respeitada. "Os homens olham, dançarinas chamam a atenção. Mas ninguém nunca passou do limite comigo. Também tínhamos regras bem rígidas no trabalho. Não podíamos, por exemplo, ter ligação com os jogadores. E levávamos isso muito a sério."

Quando a gente deixa de enxergar a mulher como um corpo de minishorts dançando dentro de campo, escuta seu nome e conhece sua história, passa a ver que ela tem muito a ver conosco. Tem receios como todas nós, tem sonhos e expectativas profissionais. E, apesar de passar por situações de machismo, não é justo resumi-la apenas a uma vítima do sistema. Muitas cheerleaders escolheram estar ali, com seu corpo, suas regras, onde elas queriam estar.

A cantora Anitta disse bem quando saiu em defesa de seu clipe "Vai Malandra" contra as acusações de objetificar a mulher: "A malandra do vídeo não é objetificada. Ela é a dona da história!". Eu sei, é difícil, é polêmico, é ousado. Até extremo. Mas eu acredito que só seremos donas da nossa história quando conseguirmos escapar do machismo que também habita em nós, apesar de tantos e incansáveis esforços, para reconhecer o valor de quem dança, de quem joga, de quem torce, de quem escreve. Cada uma com suas escolhas, cada uma com o caminho que escolheu. E todas com muito valor.

"A sociedade cobra muito", concorda Giselle. "Mas é a educação dos homens que ainda tem que mudar. Tem muito homem babaca que pensa que a mulher é apenas um pedaço de carne. Vejo pais incentivando os filhos, falando que tal mulher é gostosa, mostrando as mulheres como objetos. Meu filho tem 7 anos, eu o crio para respeitar as mulheres. Porque, desde que se sinta bem, a mulher deve poder fazer o que ela quiser."

Sobre a autora

Débora Miranda é jornalista e editora do UOL. Apaixonada por cultura. Acredita no poder transformador do esporte. Ginástica olímpica na infância. Pilates, corrida e krav maga na vida adulta. Futebol desde sempre. Corinthians até o fim.

Sobre o blog

Espaço para as histórias das mulheres no esporte, mostrando como a atividade física pode transformar vidas e o mundo. A ideia é reunir depoimentos sobre determinação, superação e empoderamento. Acima de tudo, motivar umas às outras. Vamos juntas?