No grito! Conheça narradoras que abrem caminho para as mulheres no esporte
"Não vou assistir ao jogo." "Que voz irritante!" "Vou acompanhar a partida no mute." "Parece a minha mãe gritando comigo." A internet ficou assolada de reclamações quando a ESPN nos Estados Unidos resolveu dar à jornalista Beth Mowins a oportunidade de narrar um jogo de futebol americano na tradicional "Monday Night Football", em setembro do ano passado. Pela primeira vez na história da NFL (a liga de futebol americano), uma mulher narrou a partida do horário nobre em rede nacional. As redes sociais vieram abaixo. Mas NENHUMA reclamação que eu li se referia à competência de Beth ou a algum erro que ela tivesse cometido durante a transmissão.
Ter mulheres narrando eventos esportivos ainda é um tabu gigante –e, pelo visto, não só no Brasil. Jornalistas e locutoras estão dando agora os primeiros passos para conquistar espaço em um dos trabalhos mais masculinos do esporte, que precisa de mais abertura não apenas das emissoras de TV e de rádio, mas também do público.
"Sempre haverá pessoas que não querem as mulheres nas transmissões de jogos. Isso não é problema meu. É problema delas. Não perco tempo me preocupando com isso, apenas continuo trabalhando duro", afirma Beth Mowins. Com relação à repercussão negativa –e por que não reconhecer?, cruel– na internet, ela completa: "Não tenho tempo para pessoas negativas com atitudes negativas. Escolho ouvir meus colegas de trabalho, minha família, meus amigos e as pessoas que podem me ajudar a melhorar dia a dia".
Beth Mowins fez história. E sabe disso. Um mês depois, em Minas Gerais, uma jovem estudante de jornalismo da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) seguiria os passos da precursora americana. Aos 20 anos, a estagiária Isabelly Morais ganhou a missão de narrar a partida entre América-MG e ABC, pela Rádio Inconfidência, tornando-se a primeira mulher a narrar uma partida de futebol no rádio mineiro e também a primeira mulher a narrar uma partida da série B do Brasileirão.
"Narrar futebol não era algo com que eu sonhava, não", diz, franca, Isabelly. "Foi uma oportunidade que surgiu, por meio do meu chefe, e eu topei. Fui treinando ao longo do semestre, me preparando em casa, narrando umas partidas e uns lances isolados, até que aconteceu minha estreia. Considero que a minha narração tenha sido, sim, um momento histórico para as mulheres. Esse meio ainda é muito restrito. Ser a primeira a narrar um jogo na história do rádio de Minas Gerais é realmente muito simbólico e representativo, mas ainda é pouco. Sou totalmente apaixonada por esportes e quero seguir nessa carreira."
A jovem estagiária da Rádio Inconfidência conta que a repercussão em torno de seu trabalho foi grande e, segundo ela, positiva. "Eu acompanhei até onde meus olhos conseguiram chegar. Recebi muitas mensagens nas redes sociais e fui procurada para reportagens. A repercussão foi gigantesca, o que me deixa muito feliz. Foi até para fora do país!", conta. E quando Isabelly ganhou o mundo, sua história chegou justamente a Beth Mowins, a narradora de futebol americano, que fez questão de escrever para ela dando parabéns. "Cada mulher fazendo história em seu lugar né? Espero que outras façam Brasil afora", diz a jovem, que, no Twitter, respondeu à jornalista americana dizendo que ela é uma grande inspiração e agradecendo por sua coragem.
"Sei que ela recebeu muitas críticas com relação à voz, e eu também recebi, porque temos vozes mais agudas, mais finas. Claro que, para quem se acostumou por décadas e décadas a uma narração masculina, escutar uma narração feminina causa um pouco de estranheza. Acho que os torcedores de esporte têm, sim, resistência com mulheres atuando nessa área. Crescemos com o radinho no ouvido escutando homens narrar partidas de futebol e, aí, vem uma mulher, com uma voz totalmente diferente, um timbre diferente, uma entonação diferente. Mas não é por haver resistência que temos que ceder. Assim, o que hoje é estranho pode virar algo comum e natural para os ouvidos dos amantes de futebol. E para quem não gosta de futebol também."
Ao vivo no estádio
"Goooooooollllllll. É do Corinthians!" A voz que ecoa na Arena Corinthians e embala a torcida cada vez que o Timão balança a rede é de uma mulher: a locutora Chris Lima, 34 anos. Chris conta que sempre trabalhou com a voz. Desde os 15 anos, cantava em barzinhos, mas, formada em rádio e TV, decidiu investir no trabalho de locutora. "Em 2014, surgiu a oportunidade de fazer um teste para ser locutora da arena. Tinha eu e mais 15 homens. Achei que não ia dar… Nunca tinha ouvido falar de nenhuma mulher que fizesse esse trabalho. Fui sem muita expectativa", lembra.
No teste, ela precisou fazer uma passagem de jogo, narrar uma escalação e, depois, ainda dizer um texto improvisado "para testar a dicção e a desenvoltura". "O resultado demorou uns dois, três meses para sair. Achei que não tinha rolado, mas aí veio a notícia de que tinham gostado de mim. Me deram a oportunidade, e estou lá até hoje."
Chris conta que sempre gostou de futebol e garante que o Corinthians é seu time do coração. Mas trabalho não é torcida, e ela leva muito a sério suas responsabilidades no comando do microfone que ecoa em Itaquera. "No começo, tinha aquele nervosismo… Eu fazia as coisas bem mais dentro do roteiro. Sigo uma programação dos avisos que tenho de dar, dos anúncios que preciso fazer. E fui percebendo que, como estou no estádio, é tudo ao vivo ali, na hora, eu tinha que chamar a torcida. Foi um grande desafio saber me portar diante dos torcedores, ir descobrindo o que o corintiano gosta que eu fale. Quando eu aprendi a colocar o meu emocional em cena, me ajudou muito. Inclusive no grito de gol."
A dona da voz da Arena Corinthians diz que a repercussão de seu trabalho sempre foi positiva. "Ninguém foi contra mim, nunca senti na cara. Mas sei que é um meio que tem de lidar com cuidado. Rolam umas piadinhas machistas aqui e ali, mas nada diretamente direcionado a mim, por isso que eu digo que não sofri. A resposta no geral é muito positiva."
Espaço para novos talentos
O canal Esporte Interativo resolveu investir em novos talentos femininos da narração esportiva e está exibindo, desde a semana passada, o programa "A Narradora LAY'S", uma espécie de competição que dará oportunidade à vencedora de narrar um jogo da UEFA Champions League ao vivo –em parceria com o comentarista Mauro Beting. Além disso, a selecionada receberá uma proposta de contrato para integrar o time da emissora.
O reality show –exibido de segunda a sexta, às 20h30, e nos finais de semana, às 13h– é apresentado por Taynah Espinoza, que comanda as transmissões da Champions League durante a temporada. Formatos como esse –a Fox Sports também deve lançar atração semelhante– já foram criticados pelo tipo de exposição a que submetem as candidatas, mas as emissoras defendem sua intenção de abrir espaço para novos talentos.
O jornalista Mauro Beting destaca: "É maravilhoso que a mulher ocupe cada vez mais espaços na sociedade, como ela ocupa já há muito tempo nas faculdades de jornalismo e nas redações. Só não ocupa mais no futebol por conta do preconceito, até mesmo por parte do público. É lamentável". Ele lembra que teve "o privilégio de trabalhar com grandes guerreiras" e cita Regiani Ritter, da Rádio Gazeta, "uma das desbravadoras", e Luciana Mariano, que venceu um concurso de narradora na Band em 1997. "Depois ela viria a se casar com o Luciano do Valle e, mesmo agora, trabalhando na ESPN, ainda algumas manchetes se referiram a ela como a ex-mulher do Luciano do Valle. Não é ex-mulher. É uma brilhante profissional e dedicada narradora."
Sobre a tradição que a maior parte dos programas de esporte mantêm de contratar mulheres sempre –e necessariamente– muito bonitas e de colocá-las em papéis secundários, sem destaque na cobertura esportiva, Taynah destaca: "Isso acontece porque o mundo ainda vê a mulher como objeto. Ela precisa provar muito que entende de esporte para ganhar uma posição de maior destaque".
Mauro Beting completa: "Nada contra profissionais competentes e também muito bonitas, por exemplo uma Miss Brasil que é extremamente competente como a Renata Fan. Mas fica a pergunta: se ela não fosse tão linda e tão competente, será que teria o mesmo espaço? Infelizmente há muito machismo, muito sexismo e muita distinção". E destaca, com bom humor, a diferença de oportunidades para homens e mulheres. "Eu, sendo bem franco, sou feio para o diabo e, mesmo assim, graças a Deus, há muito tempo trabalho na mídia esportiva."
Taynah diz que o mundo do esporte evolui "a passos de tartaruga" e que as jornalistas dessa área ainda sofrem muito. Mas vê com bons olhos a oportunidade de quebrar paradigmas e ter uma narradora feminina no canal.
"Ainda é muito comum uma jornalista cobrir um jogo e ouvir xingamentos de cunho sexual ou ver gestos obscenos sendo feitos na sua direção. Ainda é muito comum uma jornalista tentar descobrir uma negociação com um empresário e ouvir 'quando vamos jantar?'. Mas entendi que só enfrentando esses discursos e mostrando que estava ali para trabalhar eu iria crescer. No caso da narradora, imagino que as pessoas vão se surpreender. Afinal, não é natural aos nossos ouvidos escutar uma mulher narrando. Acho que é uma forma de aumentar a aproximação do público feminino com o esporte, pois as mulheres se veem pouco representadas nos canais esportivos. Mas acredito também que uma boa narradora deva atingir mulheres e homens. Importante é a qualidade, e não o sexo do profissional."
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