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Débora Miranda

Kyra Gracie: "Quando comecei, não dava para imaginar mulher faixa preta"

Débora Miranda

15/09/2018 04h00

Parte da lendária família Gracie, Kyra teve que literalmente lutar para conseguir seu espaço no jiu-jítsu. Ela lembra que, desde pequena, brincava no tatame que tinha em casa, mas que quando a família percebeu que sua intenção era levar o esporte a sério, não foi fácil.

Kyra Gracie em 2010, no mundial de Los Angeles, quando conquistou o quinto título mundial (Reprodução/Instagram)

"Me chamaram e falaram: 'O jiu-jítsu não vai te levar a lugar nenhum. Você é mulher, deixa isso para os homens da família. Eles não viam futuro promissor para uma mulher dentro do esporte. Que era real, porque, na época, uma mulher dando aula, sendo atleta, ou se tornando faixa preta era algo que não dava para imaginar."

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Kyra conta que as dificuldades a motivaram ainda mais. Foi a primeira mulher faixa preta da família e se sagrou pentacampeã mundial de jiu-jítsu. Hoje, atua como comentarista do SporTV e do canal Combate e estreia na segunda-feira, às 20h, a terceira temporada do programa "Laboratório da Luta", no Combate. Sempre vaidosa, diz que lutar com as unhas pintadas de rosa se tornou uma superstição.

Também comanda a própria academia, no Rio de Janeiro, e comemora a participação cada vez maior de mulheres no jiu-jítsu. "O nosso público feminino é meio a meio [com os homens]. Isso é incrível! Conseguimos atrair as mulheres. Claro que também pela minha imagem, mas principalmente por essa questão da defesa pessoal. Mulheres que nunca pensaram em fazer jiu-jítsu se sentem confortáveis nessa aula."

Leia, abaixo, trechos da entrevista.

Bonecas no tatame

Eu comecei a brincar com o jiu-jítsu ainda de uma maneira lúdica, praticamente engatinhando, porque eu tinha um tatame dentro de casa. E como uma Gracie, eu assistia a todas as aulas e a todos os treinos dos meus tios e dos meus primos. Então, de uma maneira natural, eu levava as minhas bonecas para dentro do tatame e lá eu brincava.

Mulheres Gracies

A família Gracie vem do lado da minha mãe. Ela fez um pouco de jiu-jítsu e chegou até a faixa azul, que é a segunda faixa. Ela tinha muito talento, mas parou por não ter incentivo e por viver em um ambiente muito masculino. Os meus tios, irmãos dela, ficaram um pouco com ciúme e tiraram ela do jiu-jítsu. Isso teve um lado bom porque, quando eu resolvi me dedicar e ser atleta, a minha mãe foi a primeira a falar: 'Eu parei, mas a minha filha não vai parar'. De fora geral, era um ambiente do qual as mulheres eram bem excluídas. Era um clube da luta, só para homem.

Kyra no UFC do Rio de Janeiro, em maio; ela é comentarista do SporTV e do Combate (Reprodução/Instagram)

Faixa preta inimaginável

Eu comecei a competir com 11 anos, mas nessa época ainda era uma brincadeira. Quando viram na minha família que eu queria levar a sério, quando comecei a viajar para disputar torneios internacionais, com meus 15 anos, me chamaram e falaram: 'O jiu-jítsu não vai te levar a lugar nenhum. Você é mulher, deixa isso para os homens da família. Mas não é porque eles tinham preconceito com mulher, é porque eles não viam futuro promissor para uma mulher no esporte. O que era real, porque, na época, uma mulher dando aula, sendo atleta, ou se tornando faixa preta era algo que não dava para imaginar.

Motivação

Olhando para trás eu vejo que isso que me motivou, me motivou muito, porque eu lembro de cada frase, de cada palavra. 'Isso não é para mulher', 'Vai passar fome se for dar aula', 'Quem é que vai querer ter aula como uma mulher?' Eu ouvia isso bastante. Até nos campeonatos. Diziam que as lutas entre mulheres não eram boas. Isso tudo me motivou muito a querer mostrar o meu trabalho, a lutar, a levantar a bandeira das mulheres dentro do esporte. E vejo que foi muito bom, porque o público  feminino no jiu-jítsu cresceu absurdamente.

Legado

É claro que a bandeira feminina é muito importante, mas eu vejo além. Acho que o mais importante é trabalhar para levantar o esporte de forma geral. Tanto no meu trabalho na televisão quanto nos eventos de jiu-jítsu, busco atrair um novo olhar e um novo público para o esporte. Na minha academia, no Rio, damos aulas a partir dos 5 meses até a terceira idade, para homens e mulheres. As pessoas ainda têm um preconceito grande, acham que o filho vai ficar agressivo se fizer jiu-jítsu, que a menina vai ficar masculina. Confundem muito, e quero quebrar esses preconceitos.

Defesa pessoal

Hoje, trabalhamos também com defesa pessoal. Trata-se de um resgate à essência da família Gracie. Na academia mais importante da família, que ficava na avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, nos anos 1950, para você ingressar e evoluir com qualidade no jiu-jítsu, tinha que passar pelo programa de 36 aulas de defesa pessoal. Você vai estar preparado para se defender em qualquer situação de agressão na rua. Esse lado foi muito esquecido, e estou resgatando. Isso atrai muitas mulheres também. O nosso público feminino aqui é meio a meio com os homens. Isso é incrível. Claro que por causa da minha imagem, mas principalmente por essa questão da defesa pessoal. Mulheres que nunca pensaram em fazer jiu-jítsu se sentem confortáveis nessa aula. Mas claro que ainda temos o jiu-jítsu competitivo.

Vaidade e feminilidade

Quando eu era atleta, não tinha muito tempo para me cuidar. Mas quando conseguia estava no salão. Eu lutava sempre com a unha rosa, virou até uma superstição. Depois que eu parei de competir foi maravilhoso por esse lado de ter mais tempo para mim, para cuidar do meu cabelo, cuidar da minha pele. Hoje, a cabeça das mulheres já está mudando muito. Elas estão percebendo que podem estar nesse meio e cuidar da beleza.

Com o marido, o ator Malvino Salvador, as filhas e o célebre quimono rosa (Reprodução/Instagram)

Quimono rosa

O quimono rosa tem uma importância muito grande na minha carreira. Antes, eu gostava de pôr uns decalques no quimono, umas flores, para levar um lado mais feminino para dentro do tatame. Os quimonos sempre foram largos demais, as camisetas sempre masculinas. Um dia, peguei um quimono branco, tingí de rosa e fui treinar. Ficou horrível [risos]. Estava na moda quimono azul e preto, tinham acabado de lançar. Aí pedi para um patrocinador fazer um rosa para mim. Tirei umas fotos com ele para uma revista e virou o maior sucesso. As mulheres amaram Hoje, no mundo inteiro, todas as artes marciais começaram a utilizar o quimono rosa, porque é uma maneira de atingir o público feminino, principalmente as crianças. Elas adoram.

Sobre a autora

Débora Miranda é jornalista e editora do UOL. Apaixonada por cultura. Acredita no poder transformador do esporte. Ginástica olímpica na infância. Pilates, corrida e krav maga na vida adulta. Futebol desde sempre. Corinthians até o fim.

Sobre o blog

Espaço para as histórias das mulheres no esporte, mostrando como a atividade física pode transformar vidas e o mundo. A ideia é reunir depoimentos sobre determinação, superação e empoderamento. Acima de tudo, motivar umas às outras. Vamos juntas?