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Débora Miranda

Peito de fora no estádio te ofende? A difícil arte de desconstruir padrões

Universa

10/11/2019 04h00

Passei muito tempo desta semana pensando na notícia da torcedora que mostrou os seios no estádio durante o jogo entre Grêmio e Internacional, no domingo passado. A ousadia viralizou, mas o debate se agravou quando um comentarista decidiu abandonar o programa de rádio em que a gremista estava, convidada a falar sobre a decisão de expor o próprio corpo publicamente.

Questionada se havia tomado a decisão de propósito, com a intenção de viralizar, Maikelly Muhl assumiu que sim. "Claro, estou aqui para isso. [O topless aconteceu] no segundo gol e no final do jogo", disse.

Ao ouvir isso, Rodrigo Adams, da rádio Atlântida, informou então aos ouvintes que estava se retirando. "Desculpa aí, gurizada. Em respeito às torcedoras do Grêmio, do Inter, do Flamengo, de todo o mundo, obrigado", disse o comentarista.

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Ainda no programa, Maikelly explicou: "Eu acredito que a mulher merece respeito independente da roupa".

Mais tarde, o comentarista voltou ao tema, para esclarecer por que havia decidido abandonar a discussão. "Nada pessoal contra a menina, só que esse tipo de atitude me incomodou muito. Vou ao estádio desde 1987, nunca vi isso. E a gente vive uma cultura em que as meninas estão cada vez mais inseridas no futebol, na vivência do estádio, estão viajando atrás de seus clubes porque o mundo está mudando. Precisamos aceitar isso", disse. "Tenho certeza absoluta de que ela não fez dizendo assim: 'Que estuprem as mulheres, que agarrem as mulheres', mas infelizmente é isso o que acaba ocasionando."

Quem vai a estádios de futebol com certa frequência e há muito tempo sabe que o argumento de Adams se encaixa bem à realidade: um ambiente machista –embora cada vez mais ocupado por mulheres— em que ainda existe a tendência de abuso por parte do homem, em todas as suas formas.

Assédio, desrespeito, não-aceitação, está tudo lá. Mas se tem uma coisa em que eu acredito é que o futebol –nas suas lutas e nas suas glórias— nada mais é do que um reflexo do mundo. O dia a dia das mulheres ainda está repleto de assédio, desrespeito e não-aceitação em muitos outros universos que não só o do esporte. Enfrentar e extinguir o machismo é o desafio. Mas quão especialmente difícil é desconstruir padrões dentro de um estádio de futebol?

Da mesma forma que Adams não acredita que Maikelly tenha querido incentivar o estupro, também acredito que ele não tenha querido reforçar comportamentos machistas. E sei que sua indignação foi compartilhada por muitas mulheres –sempre vale lembrar que o machismo ainda está incrustado na gente e que é um exercício diário também nos questionar e mudar nossos comportamentos.

A torcedora gremista Maikelly Muhl (Reprodução/Instagram)

Por tudo isso, talvez a primeira sensação de muitos de nós ao ver uma torcedora de peitos de fora em um estádio tenha sido de incômodo. Como foi comigo e com o comentarista da rádio Atlântida. Ou até de ofensa.

Uma vez, em uma pesquisa para uma reportagem sobre grupos feministas que estavam nascendo nas arquibancadas, conversei com uma torcedora que me disse o seguinte: "As meninas querem ir produzidas para o estádio e não querem que os caras mexam com elas? Podem ir sem maquiagem, de calça jeans e camiseta, apenas para assistir ao jogo, que passarão despercebidas. Sabemos que os homens não são bonzinhos, mas as mulheres conquistaram o espaço que têm hoje exatamente porque souberam se comportar em um ambiente machista".

Eu chorei. Chorei muito. Porque eu já fui essa pessoa que teve de aprender a "se comportar". Quando comecei a ir aos jogos do Corinthians, nos anos 1990, era barra demais ser mulher em estádio e em caravanas de torcida. E passar despercebida era quase uma forma de proteção. Roupas largas e longas. Boné. Mostrar o corpo jamais. E o pavor constante de virar alvo de gritos criminosos vindos da arquibancada. Comigo pelo menos nunca houve uma discriminação direta, mas era uma opressão moral que eu só consegui entender muitos anos depois.

Felizmente eu cresci, não tenho mais 15 anos. Pude dividir a vida, a arquibancada e a minha profissão com tantas mulheres que me mostraram diferente. A nossa roupa, no mundo e também no estádio de futebol, não define o tanto de respeito que merecemos. A exposição do nosso corpo não dá a ninguém o direito de nos atingir –nem física nem moralmente. E especialmente não dá a liberdade a homem algum de atingir outras mulheres, como supõe Adams.

Ainda vivemos sob essa ameaça constante. Não existe mulher que saia de casa sem avaliar se a roupa que está vestindo é segura. Ainda temos medo. Ainda nos olhamos no espelho pensando se a saia está curta demais, se a blusa está decotada demais. Mas quem decide o limite desse demais? Até quando teremos que "saber nos comportar em um ambiente machista"? Quem precisa mudar padrões de comportamento? A vítima ou o agressor?

Mostrar os peitos em um estádio de futebol não é algo que eu faria –na mesma medida em que não faria isso em público na minha vida. Apenas porque não tenho esse desprendimento nem essa ambição. Mas isso serve para mim. Maikelly, aparentemente, tem outro pensamento. E o comportamento dela no Gre-Nal me fez encarar meu desconforto e entender que é importante respeitar outra mulher quaisquer que sejam as escolhas dela. Me fez ter mais certeza de que é difícil desconstruir padrões, mas que esse exercício é essencial até que todas –torcedoras do Grêmio, do Inter, do Flamengo, de todo o mundo— possam ser respeitadas por suas escolhas igualmente.

Sobre a autora

Débora Miranda é jornalista e editora do UOL. Apaixonada por cultura. Acredita no poder transformador do esporte. Ginástica olímpica na infância. Pilates, corrida e krav maga na vida adulta. Futebol desde sempre. Corinthians até o fim.

Sobre o blog

Espaço para as histórias das mulheres no esporte, mostrando como a atividade física pode transformar vidas e o mundo. A ideia é reunir depoimentos sobre determinação, superação e empoderamento. Acima de tudo, motivar umas às outras. Vamos juntas?