Regina Duarte apaixonada por Bolsonaro? É isso que devemos discutir?
Apaixonada, louca, histérica, chiliquenta. Regina Duarte vem repetindo a trajetória que desde sempre foi trilhada pelas mulheres na política brasileira: virou alvo de acusações que nada têm a ver com sua competência ou sua atuação profissional.
E foi isso que me fez hoje deixar o tema esporte de lado –tradicionalmente tratado neste blog aos domingos– para discutir não a política em si, mas o machismo que ainda a conduz. Tanto internamente quanto publicamente.
Reportagem publicada pela "Folha de S.Paulo" de hoje ouviu o diretor Daniel Filho, que conhece Regina há 55 anos –inclusive foi casado com ela–, para tentar explicar a trajetória política da atriz. A teoria é que ela teria dado uma guinada drástica da esquerda –por não ter apoiado a censura, ter protagonizado a corajosa "Malu Mulher" e ter almoçado com Fidel Castro em uma viagem a Cuba– para a direita conservadora, assumindo o posto de secretária de Cultura do governo Bolsonaro.
Entre as teorias levantadas por Daniel para tamanha incoerência política estão: problemas psicológicos, dupla personalidade e, o que gerou grande destaque e polêmica, a possibilidade de ela estar apaixonada pelo presidente. É gozado que o próprio diretor afirma: "Quando ela põe uma coisa na cabeça, ela põe uma coisa na cabeça". Mas ele não cogita que Regina, como ser pensante que é, possa ter analisado o país, a política, seus valores pessoais, levado em conta suas convicções e simplesmente decidido mudar de ideia. Quem nunca?
Colocar uma mulher de quem discordamos ideologicamente como doente mental ou apaixonada é o caminho mais fácil para fragilizá-la e ridicularizá-la, além de fugir totalmente do mérito do debate. O fato de Regina se fechar para o diálogo com a classe artística não é correto para uma secretária de Cultura. Ela não lamentar publicamente a morte de atores e escritores essenciais para a construção da história do país indigna. O fato de ela ter minimizado mortes no regime militar é uma afronta. Essas são as questões a serem debatidas.
Por que a insistência em fugir do que realmente importa e partir para acusações que são claramente misóginas? Alguém aí cogitou que algum homem da equipe de Bolsonaro esteja apaixonado por ele ou tenha dupla personalidade por defender as plataformas de seu governo e seu discurso ideológico? Eu não vi.
As graves consequências desse tipo de fala não são difíceis de detectar. Num simples passar de olhos no Twitter, por exemplo, em comentários sobre a reportagem, há afirmações do tipo:
"Faz sentido, a demência ou a paixão pelo presidente. Triste"
"Ainda bem que Regina Duarte não está mais em idade reprodutiva"
"É o retardamento da idade, a velha está fora do eixo, surtada"
"Muito velha. Bonoro [sic] gosta de novinhas, pelo menos uns 30 anos mais jovem"
"Regina Duarte não sei. Mas @CarlaZambelli38 com certeza", afirmou uma mulher, referindo-se à deputada federal que também apoia Bolsonaro.
Importante destacar que esses ataques são direcionados a mulheres da esquerda ou da direita, não há um único foco. Dilma Rousseff, por exemplo, politicamente oposta a Regina Duarte, foi alvo de agressões bastante semelhantes enquanto era presidente.
Representantes de vários segmentos ligados à participação feminina na política debateram, em março, os tipos de violência e as principais restrições que afastam as mulheres dessa atuação. Na audiência pública da Comissão Mista de Combate à Violência contra a Mulher, segundo reportagem da Agência Senado, a deputada Talíria Petrone destacou a forte caracterização do corpo como forma de violência contra a mulher: "Chamam de vadia, louca, burra, feia".
Posicionamento semelhante foi colocado em pauta pela professora da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenadora de Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher, Marlise Almeida. "Ela mostrou como três presidentes eleitas nas últimas décadas na América do Sul –Dilma Roussef, Michelle Bachelet (Chile) e Cristina Kirchner (Argentina)– sofreram críticas negativas relacionadas ao corpo e a supostos fracassos na maternidade. Ou tiveram associação permanente a figuras masculinas como se delas dependessem, como os ex-presidentes Lula e Nestor Kirchner, da Argentina", destaca a reportagem.
"Mais do que um problema criminal, tal forma de violência coloca limites concretos à democracia, aos direitos humanos, à igualdade e à justiça de gênero", afirmou Marlise.
O estudo "Uma questão de gênero: ofensas de leitores à Dilma Rousseff no Facebook da Folha" (2016), das pesquisadoras Pâmela Caroline Stocker e Silvana Copetti Dalmaso, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, analisou as ofensas de leitores direcionados à então presidente e concluiu que apenas 44% eram desqualificações ligadas ao cargo. O resto tinha relação com questões diversas de gênero:
16% – machismo e sexismo
12% – gaslighting (manipulação psicológica, que leva a mulher e todos ao seu redor acharem que ela enlouqueceu ou que é incapaz) e mansplaining
12% – bropriating (quando a atuação política de uma mulher é associados à de um homem, por quem ela seria manipulada)
8% – misticismo e religiosidade
8% – ódio e misoginia.
O Comitê das Nações Unidas de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais também já destacou, por meio de relatório, o tratamento dado à mulher na sociedade brasileira, sugerindo que a representação das mulheres como indivíduos inferiores aos homens poderia torná-las mais vulneráveis a todos os tipos de violência.
Na reportagem com Daniel Filho, ele declara: "Só dei esta entrevista para você escrever 'Daniel não está entendendo o que está acontecendo com a Regina, só sabe que ela está totalmente errada'".
É possível achar que Regina Duarte esteja totalmente errada em sua atuação como secretária da Cultura. Mas mais errado é querer discutir isso questionando se ela está apaixonada pelo presidente. Errado e cruel.
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