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O futebol feminino resiste na várzea

Débora Miranda

25/01/2018 08h00

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O Brasil entrou em catarse coletiva em 2016 quando, em plena Olimpíada do Rio, um garoto de 12 anos apareceu com o nome de Neymar riscado na camisa da seleção brasileira de futebol e, no lugar, surgiu escrito em canetinha "Marta", seguido por um coração. O país vinha de anos de frustração com a seleção masculina, um 7 a 1 humilhante na Copa e uma campanha nos Jogos Olímpicos que até então não parecia promissora (mas que, sim, acabou com a conquista do título inédito).

Em lado oposto figurava o futebol feminino brasileiro, sempre movido por raça e determinação. Sempre querendo muito todos os títulos, querendo demais. O sentimento de "Jogai por Nós" foi revisto e nunca pareceu tão justo carregar o nome da craque Marta nas costas daquela camisa 10 verde e amarela.

Apenas um ano e meio se passou. E eu desafio você a me dizer, sem pesquisar no Google, onde está Marta hoje. Em que time ela joga. Ou qual foi o último campeonato disputado pela seleção brasileira feminina. E que resultado teve. Mas você provavelmente sabe que Neymar, após uma negociação trilhardária, trocou o Barcelona pelo Paris Saint-Germain. E que ele voltou a namorar Bruna Marquezine no Réveillon, em Fernando de Noronha.

Várzea define um terreno baldio, por vezes às margens de algum rio, utilizado como campo de futebol por equipes amadoras. Tradicionalmente ocupados por times masculinos, que disputam campeonatos aos finais de semana, esses campos hoje também abrigam partidas femininas e ajudam a cultivar sonhos de carreira no futebol e de uma vida melhor. Como foi para os homens durante tanto tempo a única perspectiva de transformação de vida, o futebol hoje também é para essas mulheres uma esperança de realização. E para os brasileiros, a expectativa de que mais Martas surjam para inspirar e orgulhar. Não só quando a seleção masculina for mal, em um rabisco de canetinha.


A transformação começa pelas periferias

A maior parte das meninas e mulheres que jogam na várzea não treina: só entra em campo aos finais de semana, quando não está trabalhando nem estudando. Os campeonatos são informais, combinados via WhatsApp. São cerca de 60 times de todo o Estado nesse grupo de celular. E as jogadoras confirmam: nos últimos três anos, o futebol feminino de várzea só cresceu.

As dificuldades são inúmeras, os campos são ruins e a cada partida as jogadoras gastam dinheiro do próprio bolso com condução, lanche e o que mais precisarem. Mas a difícil caminhada, para elas, é alegria. E se muitas famílias ainda não aceitam as meninas jogando futebol, a nova geração de garotos apoia, incentiva e divide espaço com elas nas peladas de rua. Desde crianças.

"Os meninos me tratam superbem, não tenho o que falar deles." Quando Caroline Cristine Rodrigues, 23 anos, goleira do Água Santa, time de várzea de Diadema (ABC), me disse que era muito bem tratada por seus colegas homens de equipe, confesso que fiquei surpresa. E ouvi a mesma coisa de todas as outras jogadoras com quem conversei. No caso de Caroline, como a equipe feminina do Água Santa não conta com um treinador específico para goleiras, ela pediu se poderia treinar com os homens –o time masculino disputa a série A2 do Paulista, por isso tem mais estrutura.

Caroline queria receber um preparo mais específico para sua posição. E conseguiu! "Eu encaro como superação. Quero mostrar que lugar de mulher é onde ela quiser. Treino no mesmo nível que eles, dou meu melhor", diz ela. "Mas a nova geração é muito mente aberta", dispara.

Nas periferias de São Paulo e na região metropolitana, onde o futebol jogado na rua ainda faz parte da infância de todo o mundo, meninos e meninas se misturam em peladas vencidas por quem tem mais intimidade com a bola.

"Cresci num lugar em que todo o mundo jogava bola. Lá era normal", conta a estudante Carolina Ribeiro dos Santos Martins, 16 anos. "Preconceito com relação a mim nunca senti. Mas ainda são poucas as meninas que gostam de futebol. A maioria acho que tem vergonha."

Ela vive em Embu-Guaçu (Grande São Paulo) e joga no Luvence, time de várzea da cidade. Mesma equipe de Keila Galdino de Souza, 26 anos, auxiliar de cozinha.

"Me mudei para Embu-Guaçu aos cinco anos. Só tinha menino na minha rua, e eles gostavam de jogar futebol. Aí eu jogava com eles. Nunca senti preconceito da molecada, mas do povo mais velho, sim. Viviam dizendo que futebol é coisa de homem e que eu devia brincar de boneca", lembra.

Orgulho e preconceito

Se a nova geração é mente aberta, como diz Caroline, a geração anterior não encara as meninas boleiras com a mesma naturalidade. Ela lembra que começou a gostar de futebol por influência do pai, que a levava a seus jogos e deixava que ela brincasse com a bola nos intervalos. Mais tarde, quando a diversão virou paixão, ele não achou boa ideia.

"Ele nunca me prendeu, mas sempre falou que não teria futuro. Tanto que, quando eu jogava campeonato, ele não ia." Mas Caroline bateu o pé e, hoje, é a craque da família. "Meu pai mudou. Ele sempre deixou claro que eu preciso ter um segundo plano, que uma hora o futebol vai acabar. Mas gosta de ir aos jogos, acompanha os treinos, cuida da minha alimentação. É um paizão!", conta, feliz da vida.

Keila lembra que seu pai também era machista no começo. "Hoje mudou. Minha família foi obrigada a aceitar. É a minha paixão. A maior alegria é chegar o final de semana para poder jogar bola."

De mãe para filha

A doméstica Micheline Ribeiro dos Santos, 40 anos, é mãe de Carolina e diz que sempre enfrentou com naturalidade o fato de a filha, desde muito nova, se interessar por futebol. "A minha irmã joga futebol, eu jogava também. Quando eu tinha a idade da Carol, era a melhor da rua fazendo embaixadinha. Ganhava dos homens."

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Mas ela lembra que não era tão simples ser mulher e jogar futebol. "Na minha época era difícil. Quando os homens viam que a menina jogava melhor do que eles, chamavam de sapatão. Hoje em dia mudou bastante. Quando a Carol começou a jogar, os meninos iam lá em casa chamá-la para jogar com eles."

Carol sonha em se tornar atleta profissional, mas, enquanto não consegue uma oportunidade, investe seu talento onde pode. Joga –pasme!– em quatro times: dois de quadra e dois de campo. Está sempre filmando seus treinos e postando na internet vídeos que possam atrair a atenção de olheiros.

A mãe acompanha tudo de perto, com perseverança. "Sempre que dá, estou lá, gritando. Vou a quase todos os jogos. Nas finais é um sofrimento!" Micheline, no entanto, exige que a filha estude, caso o futebol como profissão não se realize. "Tenho que tirar nota boa para poder jogar bola. Então, sou excelente na escola", garante Carol.

"Ela tem um grande potencial para ser jogadora. Mas, se não der certo o futebol, ela quer fazer medicina. É outro sonho quase…" Micheline pausa. "Mas vamos lá, vamos juntas".

Formiga como exemplo

Eu, Débora, costumo dizer –até com certo orgulho– que sou o clichê do Brasil: a louca do Carnaval e do futebol. E nem o pouco talento que Deus me deu para jogar bola diminuiu o amor que eu tenho por esse esporte. Desde criança, jogava com amigas e amigos e, como toda corinthiana doente que viveu nos estádios nos anos 1990, tinha idolatria por Marcelinho Carioca. Era quase automático para mim, nas raras vezes em que fazia gol, sair correndo e rodando os braços, exatamente como ele fazia.

Mas o tempo passa, o tempo voa, e o futebol feminino está aí, crescendo, graças ao esforço de tanta gente que luta no dia a dia contra as limitações e adversidades que o sistema ainda impõe. E o reflexo disso é que a nova geração de meninas boleiras não imita Marcelos, Ronaldos nem Neymars.

"A Formiga para mim é uma guerreira. Lutou para estar onde ela está. Quando não tinha time para ela aqui no Brasil, ela deu a volta por cima, foi para Paris. Olha a idade que ela tem, e o futebol dela só evolui!", diz Caroline, em referência à meia brasileira, que em 2018 completará 40 anos e joga pelo Paris Saint-German.

Formiga foi duas vezes vice-campeã olímpica e uma vez vice-campeã mundial, sendo a única jogadora de futebol do mundo a ter participado de todas as edições dos Jogos Olímpicos desde que o futebol feminino entrou na disputa.

Keila concorda: "Desde o começo, uma pessoa que me inspirava era a Formiga. Sempre a achei muito guerreira. Antigamente, o preconceito era grande. E para passar por tudo isso, naquela época, tinha que ser muito forte".

Formiga se aposentou da seleção após uma polêmica envolvendo a demissão da treinadora Emily Lima, comandante do time entre 2016 e 2017. "Depois que a Emily assumiu a seleção feminina, o futebol expandiu. Porque o futebol feminino era oculto, essa é a verdade. Ele só aparecia em Olimpíada. Emily sempre acreditou nas meninas do Brasil. Depois dela, ninguém mais teve que se esconder", encerra Caroline.

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Sobre a autora

Débora Miranda é jornalista e editora do UOL. Apaixonada por cultura. Acredita no poder transformador do esporte. Ginástica olímpica na infância. Pilates, corrida e krav maga na vida adulta. Futebol desde sempre. Corinthians até o fim.

Sobre o blog

Espaço para as histórias das mulheres no esporte, mostrando como a atividade física pode transformar vidas e o mundo. A ideia é reunir depoimentos sobre determinação, superação e empoderamento. Acima de tudo, motivar umas às outras. Vamos juntas?