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"Muitas vezes, competi com os homens e sem premiação", diz Leticia Bufoni

Débora Miranda

27/02/2018 15h08

Leticia Bufoni é um dos principais nomes do skate no mundo. Está em quarto lugar no ranking mundial feminino, considerando todas as modalidades, e é a primeira no "street", sua especialidade. A brasileira da zona leste de São Paulo, que enfrentou preconceitos e a desconfiança da família, é agora a grande esperança do país nas próximas Olimpíadas, quando o skate fará sua estreia na competição.

(Reprodução/Instagram)

"Todos os atletas sempre sonham em disputar os Jogos Olímpicos, e comigo não é diferente. Agora as pessoas vão entender que o skatista também é um atleta de alta performance. A gente treina horas e horas, assim como todos os outros atletas", diz Leticia.

Corajosa e independente, ela saiu de casa ainda adolescente e se mudou para os Estados Unidos. "Fui para lá tão jovem e cheia de vontade de competir e evoluir que não tive outro sentimento além de determinação, foco e garra para ser a melhor skatista que eu poderia me tornar. Não tive chance de pensar se daria certo ou não."

Pesquisa feita pela Instituto Datafolha em 2015, encomendada pela CBSk (Confederação Brasileira de Skate), mostra que, desde 2009, o número de skatistas no Brasil mais do que dobrou, chegando a 8,5 milhões. Desses, 1,6 milhão são mulheres, saindo de 10%, em 2009, para 19%, em 2015. Mas nem por isso a vida das meninas está mais fácil no esporte.

Há cerca de um mês, a foto de premiação de um campeonato de skate causou polêmica ao mostrar Yndiara Aspcom com um cheque de R$ 5.000 pelo primeiro lugar no torneio feminino, e Pedro Barros, com uma premiação de R$ 17 mil, após ser campeão no masculino. A diferença gritante entre os valores dados aos campeões rapidamente virou debate na internet. Leticia diz, no entanto, que a situação está mudando.

"Cada vez mais, nós, mulheres, vamos ser ouvidas. Já vejo mudanças no skate feminino. Antigamente, existiam apenas campeonatos masculinos e, muitas vezes, tive de competir com eles sem premiação alguma."

Em entrevista ao "Extraordinárias", ela fala das dificuldades, do sucesso, da vaidade feminina e da expectativa para os Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2020. Leia abaixo:

Gostaria de saber mais sobre a sua ida para os Estados Unidos. Como foi viver em outro país sem os pais? Como se deu sua adaptação?

Fui para a Califórnia há dez anos para participar de uma competição e acabei ficando lá desde então. Foi tudo tão natural, as coisas foram acontecendo e, como estava focada em andar de skate, treinar e competir, a adaptação foi mais tranquila do que imaginava. Claro que tive as dificuldades naturais de chegar em um país do qual eu não dominava o idioma e onde não conhecia muita gente. Mas logo fui fazendo amizades, aprendendo a falar inglês e tudo foi se encaixando. Eu me adaptei muito bem.

Quando você decidiu ir, tinha inseguranças ou algum receio de que a carreira no skate pudesse não dar certo? Ou isso nunca passou pela sua cabeça?

Fui tão jovem e cheia de vontade para competir e evoluir que não tive outro sentimento além de determinação, foco e garra pra ser a melhor skatista que podia me tornar. Entrei em campeonatos atrás de campeonatos, e os resultados foram acontecendo. Então, acho que não tive chance de pensar se daria certo ou não.

Você tinha dinheiro na época? Quando começou de fato a conquistar estabilidade financeira?

Hoje, eu tenho toda uma estrutura, com um time comercial, jurídico, financeiro, médico. Então, todas as decisões são tomadas como um time e sempre trabalhando para que eu possa atingir o melhor resultado possível na minha carreira. Eu participo de tudo, mas meu foco é sempre a minha performance no skate. No início, foi na raça. Meus pais e minha família me ajudaram e batalharam muito para me auxiliar a conquistar tudo até hoje.

Houve recentemente aqui no Brasil a polêmica em torno da diferença de valores entre os prêmios dados aos skatistas homens e às mulheres. Por que acha que isso ainda acontece? Vê perspectivas de mudança a curto prazo?

É um assunto que está à tona. Recentemente, vimos o discurso da [apresentadora] Oprah Winfrey, a [tenista] Serena Williams também se posicionou, entre outros nomes. Acho que cada vez mais, nós, mulheres, vamos ser ouvidas. Já vejo mudanças no skate feminino. Esse evento recente é um indicador de que a mudança está sendo realizada –teve participação feminina, com transmissão da TV e premiação para ambas as categorias. Antigamente, eram apenas campeonatos masculinos e, muitas vezes, tive de competir com os homens e sem premiação alguma. Tenho certeza de que, cada vez mais, teremos mudanças. O skate feminino está numa crescente.

Li que seu pai não gostava que você andasse de skate quando começou e que chegou a quebrar seu skate no meio. Fora isso, passou alguma outra situação de resistência ou preconceito por andar de skate?

Sim, no início, meu pai não apoiava muito, porque eu era a única menina andando de skate entre os meninos. Ele tentou me proibir, quebrou meu skate, mas depois não teve jeito. Viu que eu não ia parar e foi, aos poucos, aceitando. Hoje, ele é meu fã número um. Minha mãe e irmãs também adoram e sempre me apoiaram. Nunca passei por uma situação que me fizesse pensar em desistir, graças da Deus. Depois que a turma se acostumou a me ver nas pistas, as brincadeiras de me chamar de Maria João pararam. Sempre fui bem recebida, sempre me incentivaram, deram dicas e me ajudaram a evoluir.  

Você é uma grande inspiração para a nova geração de meninas do skate –que no Brasil vem crescendo vertiginosamente. Tem alguma preocupação com relação à mensagem que passa para essas garotas?

Fico muito feliz em saber que estou ajudando o crescimento das meninas no skate. Recebo muitas mensagens legais nas redes sociais. Acho que isso tudo é fruto dos meus resultados: títulos em X Games, SLS, Copa do Mundo do Skate. Também o meu programa "Leticia Let's Go" [canal Off] ajudou o público a ver um pouco mais sobre a minha vida.

Você já disse que no começo tinha um visual mais masculino, mais "largado". Hoje, faz muitos ensaios fotográficos, alguns até com mais sensualidade. Isso de alguma forma influencia, de forma positiva ou negativa, na forma como você é tratada e vista no meio do skate?

No início, eu andava com roupa larga, mas logo notei que podia usar roupas mais femininas. Quando era pequena, não havia referência de feminilidade no skate. Em casa, sempre tive minhas irmãs como referências e, naturalmente, fui mudando meu estilo. Faço bastante trabalho fotográfico, mas sou uma skatista profissional e não uma modelo. Nunca tive um "feedback" negativo sobre isso, pelo contrário, sempre recebi incentivo, e muitas meninas acham bacana essa feminilidade dentro do universo do skate.

O que acha que a inclusão do skate nas Olimpíadas pode trazer de bom para o esporte?

Acho que todos os atletas sempre sonham em disputar os Jogos Olímpicos, e comigo não é diferente. Quando o skate entrou no programa Olímpico, eu já comecei a sonhar com isso. Não tenho dúvidas que vai ser bom para o esporte e de que vai dar mais visibilidade a ele. As pessoas vão entender que o skatista também é um atleta de alta performance. A gente treina horas e horas, assim como todos os outros atletas.

Qual é a sua expectativa para as seletivas? Como está se preparando?

Ainda não temos uma definição de como vai ser o critério de classificação, mas acho que, em breve, isso deve ser divulgado. Estamos no aguardo disso para começar a nos planejar em torno dessas competições e meu foco total será em torno das Olimpíadas. Acabei de voltar de uma pequena cirurgia no joelho, mas já retomei a minha rotina de treinos. Geralmente, eu me dedico de duas a três horas no skate, na academia e na fisioterapia. Diariamente.

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Sobre a autora

Débora Miranda é jornalista e editora do UOL. Apaixonada por cultura. Acredita no poder transformador do esporte. Ginástica olímpica na infância. Pilates, corrida e krav maga na vida adulta. Futebol desde sempre. Corinthians até o fim.

Sobre o blog

Espaço para as histórias das mulheres no esporte, mostrando como a atividade física pode transformar vidas e o mundo. A ideia é reunir depoimentos sobre determinação, superação e empoderamento. Acima de tudo, motivar umas às outras. Vamos juntas?