“Árbitro também chora”: como foi o caminho de Renata Ruel até a TV
Débora Miranda
14/06/2019 04h00
O sonho de atuar dentro de campo nasceu ainda na adolescência. Apaixonada por futebol, Renata Ruel gostava de repetir o que seria quando crescesse: árbitra. "Nunca passou pela minha cabeça ser jogadora", afirma, em entrevista ao Extraordinárias.
Renata Ruel deixou a arbitragem para ser comentarista da ESPN (Divulgação)
Ela conta de como foi bem recebida no curso da Federação Paulista de Futebol, mas destaca a resistência que as federações ainda têm de escalar mulheres nas séries principais dos campeonatos –tanto estaduais quanto no Brasil. "Eu já escutei que o receio deles em colocar uma mulher é porque, se ela errar, o erro se torna muito mais visível e mais grave do que um erro de homem. Então, eles nem arriscam."
Fala também sobre as exigências físicas quase inalcançáveis: há metas para homens e para mulheres, mas, para aptar um jogo do masculino profissional, a árbitra precisa alcançar o tempo masculino. O que, segundo ela, além de criar barreiras para atuação de mais mulheres no esporte, não tem relação com a realidade dos campos de jogo.
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Renata abre também a disparidade de salários entre as modalidades. Apesar de árbitros homens e mulheres ganharem o mesmo, quem apita jogos femininos recebe muito menos. "A desvalorização do futebol feminino já vem daí", opina.
Hoje com 40 anos, decidiu pendurar as chuteiras após receber o convite da ESPN para comentar o futebol na emissora. "Achei que não tinha mais para onde ir, a arbitragem não estava me agregando mais nada."
Leia, abaixo, trechos da entrevista.
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O que te motivou a buscar a formação de árbitro, a trabalhar com isso?
Sabe a paixão pelo futebol? Todos os árbitros têm. Eu venho de uma família apaixonada pelo futebol, e isso foi me encantando. Naquela época, a gente brincava na rua, e eu queria jogar bola. Ia para a escola, eu queria jogar futebol. Mas nunca passou pela minha cabeça virar jogadora. Eu sabia que ia trabalhar no meio do futebol e, de repente, aos 14 anos, surgiu a vontade de ser árbitra. Eu ligava na federação (Federação Paulista de Futebol) e perguntava como poderia fazer o curso e quando. Eles falavam que só quando terminasse o ensino médio, com 18 anos. Não me pergunte como surgiu esse desejo, só sei que eu falava "Quero ser árbitra!".
E como as pessoas reagiam quando você falava isso?
Entre os amigos e a família eu nunca sofri nenhum preconceito. Ao contrário, sempre me apoiaram. Mas assim que eu acabei o ensino médio, disse que ia fazer curso. E a minha mãe não deixou. Disse que eu precisava ir para a faculdade primeiro. Mas a faculdade me trouxe muito conhecimento, foi importante, sim. Assim que acabei, a primeira coisa que eu fui fazer foi o curso. Porque era o meu sonho, era um desejo absurdo.
Como foi recebida no curso?
Primeiro eles fazem uma pré-seleção. Então tem uma prova, lembro que foi no Pacaembu. Aí veio a aprovação. Éramos em quatro turmas de 50 alunos e teve um "boom" de mulheres. Se não me engano, éramos em quase 20 mulheres. A recepção de todos foi muito legal, foi uma época em que as mulheres chegaram muito bem-vindas nos cursos de arbitragem. Logo procurei o Sindicato dos Árbitros para saber como funcionava o futebol na prática e passei a atuar. Então, antes de estrear na federação, eu já fazia jogos amadores e várzea.
Como era apitar esses jogos?
A várzea e o futebol amador são as melhores escolas, porque são realidades totalmente diferentes. Você não tem a segurança de um jogo da federação. Você tem que realmente aprender a trabalhar sob pressão, sem medo. E se você não aguenta o amador, não vai aguentar um jogo profissional. Eu vi colegas desistindo por ter torcedor xingando, ameaçando. Você tem, às vezes, 30 mil pessoas atrás de você te ofendendo e precisa manter a sua concentração no campo.
Mas você enfrentou algum caso mais grave?
Eu não posso falar que eu passei por situações gravíssimas de preconceito. Teve aquele episódio em que o jogador [o meia Leandro Zanoni, do Tupã] me encarou rosto a rosto –e o pessoal até brincou que parecia UFC. Acho que aquele lance foi o mais forte da minha carreira. Eu fico me perguntando se fosse um homem se ele faria a mesma coisa. Há muito preconceito, não dá para dizer que acabou. E o que mais me entristece é quando percebo preconceito das próprias mulheres. Já estive em estádio em que ouvia gritos das mulheres na torcida: "Vai lavar louça!". Isso me doía, vindo de uma mulher machucava mesmo. E são mulheres que gostam de futebol!
Renata ficou cara a cara com um jogador do Tupã (Foto: Mario C. Gonçalves/ Divulgação)
A gente vê menos árbitras apitando jogos nas categorias principais do masculino porque tem menos mulheres ou há resistência das federações em escalá-las?
Ainda tem resistência, sim. Agora eu posso falar. Não é generalizando, não posso falar de todas as federações, não posso falar de todos os dirigentes de arbitragem, mas ainda tem preconceito. Eu já escutei que o receio deles em colocar uma mulher é porque, se ela errar, o erro se torna muito mais visível e mais grave do que um erro de homem. Então, eles nem arriscam. Mas para mim tem um outro agravante que é importante de falar: o que eles exigem hoje da mulher? Nós temos o teste físico com tempo feminino e masculino. Eles querem que, para a mulher atuar em jogos profissionais masculinos, ela faça o tempo masculino nos testes. Essa é uma das exigências, e isso dificulta muito [o acesso das mulheres]. Porque fisiologicamente a mulher é diferente do homem. Então, é um obstáculo a mais, na minha visão, que já colocam para a mulher para não chegar em jogos profissionais.
Como funciona esse teste?
A parte mais bruta do teste: são 40 tiros de 75 metros, com 25 metros de recuperação. Só que você tem um tempo. O homem tem que fazer o tiro de 75 metros 15 segundos, com recuperação de 20 segundos. A mulher, para o teste do feminino, tem que correr 75 metros em 17 segundos, com recuperação ativa de 22 a 24 segundos. Na minha opinião, após tantos anos no meio e depois de tentar entender e de conversar com especialistas, vejo que o teste físico não é a realidade do campo de jogo. O assistente, por exemplo, não dá um tiro de 75 metros nunca, porque o espaço dele é menor do que esse, é de no máximo 50 metros. É um obstáculo que eles colocam a mais.
Na arbitragem, o salário para homem e mulher é o mesmo?
É, porque o que é determinado na arbitragem é a taxa do jogo. Então, depende da categoria, não de quem está arbitrando. O que muda, por exemplo, é que temos Brasileirão masculino e feminino. Aí, a diferença de taxa é absurda. Um árbitro Fifa ganha R$ 5.000 no masculino. O feminino paga entre R$ 700 e R$ 800. E aqui na Federação Paulista é a mesma coisa. O árbitro que vai apitar um jogo feminino ganha R$ 300. Se vai apitar o Paulistão masculino, em torno de R$ 3.000 a R$ 4.000. A diferença é mais gritante ainda. A desvalorização do futebol feminino já vem daí.
A Copa do Mundo masculina nunca teve árbitra mulher?
Não. Nessa última tínhamos uma esperança de que entrasse alguém pelo menos no VAR, mas não teve.
Renata em ação; foram 15 anos de arbitragem (Reprodução)
Qual é a sua expectativa para a seleção feminina nesta Copa?
A minha expectativa é enorme. Eu sou uma pessoa que levanta a bandeira do futebol feminino e vejo um progresso enorme das equipes, uma melhora no investimento, um comprometimento maior, uma evolução dentro de campo. A minha felicidade é imensa de ter podido comentar a final da Champions League feminina pela ESPN e de ver que o Brasileirão e o Paulista estão sendo transmitidos agora pela TV aberta. E com boa audiência! Torço muito pela seleção, e acho que quem não acompanha o futebol feminino pode ver o quanto ele evoluiu.
O Brasil tem um trio de arbitragem representando o país?
Sim. A Edina [Alves Batista], que é uma grande árbitra, sensacional, merecedora de estar lá. E as duas assistentes, a Neuza Back e Tatiane Sacilotti, que também são grandes assistentes. Neste ano, por convite da federação, elas vieram para São Paulo e estavam atuando pela FPF para já chegar na Copa com um entrosamento grande. A CBF investiu muito nas três, fizeram um grande trabalho dentro da Granja Comary, e elas vão representar o Brasil da melhor maneira possível. Se a seleção não jogar a final, elas têm total condição de atuar nesse jogo.
Como se deu a decisão de deixar a arbitragem para virar comentarista da ESPN?
Eu ainda estava atuando quando eles me convidaram. Eu tinha 15 anos de arbitragem, é muito tempo dentro do campo. É algo que realmente eu amo, que me realizou, a que eu dediquei a minha vida profissional, e nunca pensei que um dia eu pudesse falar: "Cansei, preciso de outra coisa". Só que eu achei que não tinha mais para onde ir. Foram 15 anos de realizações, de muitas alegrias e tristezas –porque os árbitros também choram bastante, apesar de as pessoas não saberem. Não é fácil. Mas quando veio o convite da ESPN eu não tive dificuldade nenhuma em decidir. É um desafio enorme, que eu acredito que vá me agregar muito mais e me fazer crescer como pessoa. Se eu já estudava antes, agora tenho que estudar muito mais, porque eu quero passar a informação correta. Se eu via jogos antes, hoje eu tenho que assistir muito mais.
Sobre a autora
Débora Miranda é jornalista e editora do UOL. Apaixonada por cultura. Acredita no poder transformador do esporte. Ginástica olímpica na infância. Pilates, corrida e krav maga na vida adulta. Futebol desde sempre. Corinthians até o fim.
Sobre o blog
Espaço para as histórias das mulheres no esporte, mostrando como a atividade física pode transformar vidas e o mundo. A ideia é reunir depoimentos sobre determinação, superação e empoderamento. Acima de tudo, motivar umas às outras. Vamos juntas?