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Débora Miranda

Bolo de cenoura e mensagem de zap: como amigas têm me salvado na quarentena

Universa

19/04/2020 04h00

O interfone toca. Eu estranho, mas corro para atender.

— Dona Débora? Tem uma entrega para a senhora.
— Entrega? Que entrega?
— É da doutora Gabriela.

Fiz um rápido exercício de memória para tentar lembrar quem era doutora Gabriela. Naveguei mentalmente nas abas referentes às médicas e advogadas conhecidas. Nenhuma doutora Gabriela.

Sem ter a menor noção de quem tinha me mandado a tal encomenda, desci para recebê-la.

Na portaria, o entregador me esperava segurando cuidadosamente uma bandejinha de isopor com fatias de bolo de cenoura e cobertura de chocolate. Na tampa de plástico estava colado um pequeno envelope com meu nome.

Subi sem entender nada. Me sentei na cozinha, descolei o envelope e abri. Tinha um cartão. Na capa dizia: "Você é um sucesso". Dentro, estava escrito à mão: "Juntas, com ou sem quarentena! Amo você! Gabi".

O bolo de cenoura e o cartãozinho que ganhei de doutora Gabriela

 

Doutora Gabriela, afinal, era minha amiga Gabi. Jornalista que nem eu (quando será que ela virou doutora?). Minha vizinha de bairro. Já passamos a madrugada juntas na fila on-line do show da Taylor Swift (que agora foi adiado para 2021) e vimos o Jack Johnson quando éramos crianças. Estivemos em aniversários, festas juninas e pubs em Londres. Na semana passada, papeamos sobre obras, lava-louças, estresse e séries médicas. E, óbvio, sobre as aflições da quarentena.

Corta.

Elly (apelido carinhoso de Tatiana) me chama no zap. Digo que estou de saco cheio. "Vamos conversar sobre esse saco cheio e o que a gente pode fazer para não ficar assim? Esta semana não está sendo uma semana boa."

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Completei um mês de confinamento, e Elly já sabia que não estava sendo fácil. Tenho sentido tudo de mais. Ou de menos. Medo, ansiedade. Um vazio. Uma saudade sufocante. Um olhar para a frente e não ver nada. Uma impossibilidade de sonhar, de fazer planos, de abraçar quem eu amo.

Um quero a minha mãe constante. Um esticar as mãos e não alcançar a minha avó. Um querer espremer meus sobrinhos e só conseguir vê-los pelas fotos do celular. Uma vontade de fazer montinho nos meus irmãos e de dar um abraço apertado no meu pai. Um querer pensar para onde eu vou nas férias. Um monte de pesadelos à noite. Sono o tempo todo. Home office. Panelaço. Fome, louça suja. Doença, falta de respirador. Mortes no mundo todo.

Digo a ela que não sei por onde começar. Já não consigo mais ordenar as coisas. Nas primeiras semanas de isolamento, criei uma rotina, como dizem que devemos fazer. Me organizei, planejei. Fiz exercícios todos os dias. Colocava lições de rumba e aulas de abdominal na TV e me divertia. Com o tempo, a vontade de qualquer coisa foi acabando. Meus treinos de krav maga que o instrutor manda toda semana estão acumulados em mensagens não lidas do celular. As flores de casa morreram. Comida só congelada. E um desejo de dormir para sempre. Não pode, não dá.

Na real não sei nem identificar o que é o quê. "Já tive esse surto. Chama crise de ansiedade", ela me diz. Trocamos 983.572 áudios, e o que eu nem sabia por onde começar estava todo ali. Tranquilizo. Sei que meus sentimentos estão desmedidos, tento olhá-los com algum distanciamento, coloco o pouco que consigo sob perspectiva e repito para mim mesma que não é nada disso. Que vai dar tudo certo.

No grupo das amigas, cada uma conta um pouco do seu dia. Vitórias gastronômicas, conquistas no Bumble, discussões feministas. Memes gracinhas. Rimos, nos elogiamos, nos acolhemos, tentamos pela vigésima sétima vez marcar um encontro virtual num horário em que todas possamos.

As notificações mostram que minha irmã mandou mensagem. É minha afilhada dizendo: "Madrinha, vou te ensinar a passar batom". Ligo para ela e para a minha mãe por vídeo. Conversamos. Aprendo a passar batom. Trocamos dicas de filmes. Digo à minha mãe para fazer compressa de água quente nas costas para melhorar a dor. Mandamos beijos e amor. Desligo.

Escrevo uma última mensagem para Carol, querendo saber como está Nova York. E envio um direct pelo Instagram para Dani, em Barcelona. Sinto saudade. Como sempre.

É hora de dormir. Como um pedaço de bolo da doutora Gabriela. Passo pela louça suja e a ignoro. Escovo os dentes, me deito tranquila. Por um minuto, volto a sonhar: penso no dia em que poderei encontrar todas elas de novo. Abraçar, beijar, tomar drinks. Um dia de cada vez. Sei que elas estão aqui para mim, como também estou para elas. Juntas, com ou sem quarentena.

Sobre a autora

Débora Miranda é jornalista e editora do UOL. Apaixonada por cultura. Acredita no poder transformador do esporte. Ginástica olímpica na infância. Pilates, corrida e krav maga na vida adulta. Futebol desde sempre. Corinthians até o fim.

Sobre o blog

Espaço para as histórias das mulheres no esporte, mostrando como a atividade física pode transformar vidas e o mundo. A ideia é reunir depoimentos sobre determinação, superação e empoderamento. Acima de tudo, motivar umas às outras. Vamos juntas?