Topo

Débora Miranda

Barrar mulheres trans no esporte deve ser uma luta das mulheres cis?

Universa

14/06/2020 04h00

"Eu me considero uma mulher como tantas outras. Tenho muitas atribuições na vida: mãe, dona de casa, empreendedora, coach de saúde, halterofilista amadora e, agora, ativista dos direitos da mulher."

É assim que Beth Stelzer, fundadora do movimento Save Women's Sports (salvem o esporte feminino) se apresenta. Beth se juntou a outras mulheres cisgênero (pessoa que tem anatomia, sexo e biologia alinhados com o gênero ao qual se identifica) do esporte para lutar pelo impedimento de mulheres transexuais disputarem competições femininas.

Beth Stelzer, fundadora do movimento Save Women's Sports (Reprodução)

"Depois de treinar por alguns anos para ganhar confiança e competir em um campeonato estadual de levantamento de peso, minha chance de brilhar foi ofuscada por manifestantes de defesa de gênero, porque não permitiram que um homem competisse em uma disputa feminina. Após o campeonato, eles perseguiram a mim e a outros competidores nas redes sociais por defender a biologia", explica Beth.

O debate em torno da participação de atletas transgêneros em competições oficiais se acirra na mesma medida em que cresce a quantidade de pessoas que passam pela transição de gênero e que partem em busca de reconhecimento social e igualdade de oportunidades.

Veja também

Aproveitando o adiamento da Olimpíada neste ano, por causa do novo coronavírus, o Save Women's Sports criou uma petição enviada ao COI (Comitê Olímpico Internacional), pedindo que sejam revistas as políticas com relação à participação de atletas trans em modalidades esportiva.

O comitê, que se coloca preocupado com a "inclusão, justiça e segurança de todos os atletas", vem promovendo discussões sobre o assunto há quase duas décadas, inclusive com a participação de esportistas e de sua comissão médica. Em 2003, saiu a primeira recomendação para que atletas que tivessem passado por transição de gênero pudessem competir.

Essa orientação foi revista pelo COI diversas vezes, de forma que a decisão sempre foi a favor de abrir espaço para os atletas trans. Em 2015, houve a divulgação de algumas linhas de conduta, incluindo um nível máximo de testosterona –principal hormônio masculino– permitido no período de 12 meses antes da primeira competição oficial. Além disso, ficou definido que cirurgia de transição de gênero não seria exigida.

Ver essa foto no Instagram

 

Lowering your testosterone doesn't make you a woman either. #savewomenssports

Uma publicação compartilhada por Save Women's Sports (@savewomenssport) em

(ACIMA, PUBLICAÇÃO REPOSTADA PELO SAVE WOMEN'S SPORTS AFIRMA: "Um homem tomando estrogênio e afirmando ser biologicamente uma mulher é tão ilusório quanto eu tomar vitamina C e dizer que agora sou uma fruta cítrica")

A questão das mulheres trans no esporte é bem mais polêmica do que a dos homens, por causa do porte físico masculino. Mulheres trans que passaram pela transição de gênero mais tardiamente, muito depois da puberdade, desenvolveram-se fisicamente como homens. Esse é um dos principais argumentos utilizados por quem é contra a participação de mulheres trans em competições femininas. E por isso também o COI estabelece o monitoramento dos níveis de testosterona. Embora haja homens grandes e pequenos, fortes e franzinos, de fato, há vezes em que as disparidades físicas são gritantes.

O contrário já não causa tanta polêmica. Uma mulher que transicionou para homem normalmente não tem vantagens físicas com relação a seus competidores. O próprio COI permite que todos os homens trans disputem competições oficiais sem ressalvas.

No mundo do esporte, não pode haver injustiças, e as competições devem ser disputadas em condições de igualdade. Obviamente que, mesmo dentro de um mesmo gênero biológico, os corpos não são iguais. A forma como se desenvolveram também não. Nem o talento dos atletas. Existem muitas variáveis que fazem com que uma pessoa vença e outras não. Mas não deve existir entre os competidores um sentimento de injustiça ou de impossibilidade de superar adversários. Isso geraria frustração, desmotivação e abandono das atividades físicas.

A questão, no entanto, precisa ir além. A transição de gênero vem chegando a famílias do mundo todo cada vez mais cedo. Já há projetos de institutos e hospitais sérios que acompanham a transição de gênero em crianças –que desde cedo manifestam essa motivação e são acolhidas pelos pais.

Portanto, já há uma nova geração de pessoas trans que tem vivido a transição desde antes da puberdade, com bloqueadores e tratamentos que evitam que ela se desenvolva de acordo com o gênero biológico. Vem aí uma nova geração de mulheres trans –e também de atletas– que não se desenvolverão de fato como homens biológicos e não experimentarão os "benefícios físicos" da alta dosagem de testosterona tipicamente masculina. E o mundo do esporte precisa estar pronto para recebê-la.

São muitas questões a serem colocadas, pensadas e avaliadas. E o mais difícil, neste caso, é que ambos os lados têm argumentos coerentes, válidos e reais. Trata-se de um discussão delicada, que precisa ser conduzida com responsabilidade.

Na carta endereçada ao COI, o Save Women's Sports afirma:

"Os critérios de habilitação para transgêneros criados pelo encontro consensual de 2015, que permitem que pessoas do sexo masculino que se identifiquem como mulheres penetrem nas categorias de mulheres, são inaceitáveis. Apenas reduzir o nível de testosterona por um ano não elimina as vantagens do sexo masculino sobre as atletas mulheres.

Permitir atletas do sexo masculino que se autoidentifiquem como atletas do sexo feminino é irresponsável, negligente e perigoso. Ao adotar os protocolos de 2015 para transgêneros, vocês abandonaram o dever de proteger a segurança e a integridade das mulheres e dos esportes femininos. Isso configura uma flagrante discriminação contra as mulheres em razão do sexo biológico. Machos biológicos não devem competir nos esportes femininos".

É importante destacar que, independentemente do posicionamento que se tenha sobre a questão, ele não pode ser calcado na discriminação. Acusar preconceito não pode ser a única ferramenta de defesa das mulheres trans. Nem tampouco o preconceito deve guiar, ainda que de forma implícita, os argumentos de quem é contra a participação dessas mulheres em atividades esportivas.

Ver essa foto no Instagram

 

#SexNotGender #SaveWomensSports

Uma publicação compartilhada por Save Women's Sports (@savewomenssport) em

Chamá-las de "atletas do sexo masculino que se autoidentificam como atletas do sexo feminino" ou de "machos biológicos" só reforça comportamentos discriminatórios que todos aqueles preocupados com direitos humanos –e não apenas a comunidade LGBT– têm se esforçado para extinguir. Além de causar constrangimento e sentimento de não aceitação por parte de homens e mulheres trans.

É essencial, para uma sociedade que se preocupa com o bem-estar humano, reconhecer tudo isso. Prover liberdade, respeito e validação para que cada um viva da forma que se sentir bem e feliz. Acolher mulheres trans não configura discriminar mulheres cis. E se uma pessoa nascida biologicamente como homem se sentir mulher, é assim que ela deve ser reconhecida. E é por esse direito que nós, mulheres, TODAS AS MULHERES, temos que lutar.

Sobre a autora

Débora Miranda é jornalista e editora do UOL. Apaixonada por cultura. Acredita no poder transformador do esporte. Ginástica olímpica na infância. Pilates, corrida e krav maga na vida adulta. Futebol desde sempre. Corinthians até o fim.

Sobre o blog

Espaço para as histórias das mulheres no esporte, mostrando como a atividade física pode transformar vidas e o mundo. A ideia é reunir depoimentos sobre determinação, superação e empoderamento. Acima de tudo, motivar umas às outras. Vamos juntas?