Veleje como menina: campeã de kitesurfe faz manobra inédita e quer equidade
Débora Miranda
06/10/2019 04h00
"Eu sou muito conhecida por uma coisa: não gosto quando as pessoas, querendo me elogiar, dizem que eu velejo feito homem. Eu não acho que tem que ser assim. Por que não posso ser elogiada por velejar tão bem quanto uma mulher?"
Bruna Kajiya é tricampeã mundial de kitesurfe freestyle (Divulgação)
O questionamento é de Bruna Kajiya tricampeã mundial de kitesurfe freestyle e primeira mulher a conseguir realizar uma manobra chamada "backside 315" –isso aconteceu há três anos e, até hoje, nenhuma outra competidora foi capaz de repetir o movimento.
Bruna diz que, nos esporte radicais, como é o caso do kitesurfe freestyle –modalidade focada em manobras com voos e giros–, é comum que os homens sejam colocados como referência de qualidade.
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"Gosto de fazer tudo o que eu posso pelo kitesurfe feminino, Participei ativamente dessa transformação da modalidade, que ficou mais radical. Quero mostrar que as mulheres podem fazer manobras tão difíceis quanto os homens. Fui a primeira a fazer double handle pass [quando a manobra inclui duas trocas de mão no kite] e abri essa porta. Acho que isso foi importante para as meninas, e vamos continuar evoluindo", afirma.
Bruna conta que nunca sofreu preconceito no mundo do esporte, mas que foi difícil conquistar espaço no universo do kitesurfe freestyle. "No mundial, vi que as pessoas usavam as baterias femininas para sair da praia, dar uma volta, ir comer, fazer xixi. Ninguém se interessava pela modalidade. Sempre achei isso um absurdo e foi minha missão de vida mudar isso. Hoje conseguimos transformar o esporte feminino e mostrar que podemos fazer manobras perigosas também."
Apesar de ousada, a esportista faz questão de dizer que sente medo. "Sinto frio na barriga, aquela sensação de formigamento. Mas tudo isso para mim é motivador, eu gosto de me colocar em situações complicadas. É uma conversa interna grande e, às vezes, dá errado. Tenho duas cirurgias no joelho. Passei muito medo nesta vida até hoje. Mas é gratificante sentir tudo isso e ainda assim conseguir fazer a manobra. A adrenalina é incrível e vicia."
Outra missão que Bruna abraçou para si foi a luta pela equidade salarial na categoria –a exemplo do que já acontece no surfe, por exemplo, nos campeonatos promovidos pela WSL (World Surf League). "Eu tento muito, sou uma voz ativa nessa discussão. Mas não chegamos lá ainda. Hoje, os homens ganham 50% a mais do que as mulheres. É uma diferença grande."
A velejadora trabalhou também em um evento que acontecia em diferentes locais do mundo e que, por meio de bate-papos e vivências ligadas ao esporte, buscava despertar conexão entre as mulheres. "A ideia era incentivar a troca, a irmandade, sem essa competição que ainda existe tanto entre nós e é tão desnecessário. Para que, mesmo após o evento, elas continuassem unidas." O projeto está em pausa, mas Bruna conta que pretende retomá-lo.
Enquanto isso, na prática, ela faz seu papel e mostra que a sororidade vem antes da rivalidade no mar. Atualmente, Bruna está em segundo no ranking, atrás de outra brasileira, a jovem Mikaili Sol, de 14 anos, a quem ela apresentou o kitesurfe freestyle e com quem mantém amizade.
"Acho importante quem já compete dar uma força para a nova geração. Essas meninas vão dar continuidade ao esporte, ao legado que estamos construindo, e vão levar o esporte a novos patamares. O grande plano é fazer com que o kitesurfe feminino cresça. Então, eu tento não pensar só na minha carreira. Vejo a Mika como se fosse um pedacinho do que eu posso deixar para o esporte e também para o Brasil, que será representado por ela."
Trauma no surfe e amor pela profissão
Antes de investir no kitesurfe, Bruna –que cresceu em Ilhabela, litoral norte de São Paulo– gostava de surfar. Mas sofreu um acidente grave aos 15 anos que fez com que ela não voltasse ao esporte por um tempo.
"O mar estava bem grande, e eu era cabeça dura. Caí e abri a boca, da gengiva até a parte de fora, meu lábio se separou em dois. Tomei vários pontos, foi uma experiência bem ruim. Hoje eu até surfo, mas na época fiquei meio traumatizada", lembra.
Da janela da escola, que ficava em frente à praia, ela via o céu colorido de kite. Até que um amigo a ensinou a velejar. "Fiquei louca, mas foi amor à primeira tentativa. Nunca mais larguei."
A transição para o profissional, segundo ela, foi bem "orgânica". "Eu ia fazer faculdade de relações internacionais em São Paulo. Mas sempre fui muito do mar, muito caiçara, e minha mãe me incentivou a me voltar ao esporte. Disse que não tinha nada a ver eu ir morar em São Paulo. Meus pais, então, me ajudaram e pagaram a minha primeira competição, que foi na Venezuela. Eu fui sozinha, com 18 anos. Era meio tímida, mas velejava bem e acabei ficando em terceiro lugar. Com o dinheiro que ganhei, paguei a viagem para a próxima etapa do mundial. No fim do ano, era a terceira atleta do mundo."
Apesar do incentivo da família, ela diz que enfrentou um pouco de resistência do pai quando finalmente decidiu que não faria faculdade. "Ele é mais tradicional e começou a se preocupar. Eu sentia que ele não via aquilo como um trabalho verdadeiro, mas como um passatempo. Aos poucos, no entanto, foi aceitando. Meu pai trabalhou muito a vida toda, não necessariamente fazendo algo de que ele gostava. E hoje ele acha incrível que eu possa viver daquilo que amo. Foi legal poder mostrar isso a ele. E, hoje, é o pai mais orgulhoso da face da Terra."
Aos 32 anos e se sentindo no auge da forma física, Bruna não pensa em parar. Pelo contrário: alimenta seu sonho mais ousado. Ela quer, em 2024, quando o kitesurfe vai virar modalidade olímpica, representar o Brasil. "Ganhar o mundial é maneiro, é um sonho gigante, mas tem algo especial em ser uma atleta olímpica. Me vejo usando aquele uniforme brasileiro, cantando o Hino Nacional… Tudo isso me emociona, e esse é meu próximo sonho."
E conclui: "O esporte é a minha vida. O que ganhei com ele não consigo calcular nem estimar. Tudo o que vivi, as pessoas e as culturas que conheci, o que eu aprendi, o que me fez crescer. Não consigo imaginar a minha vida sem o kite, sou abençoada e grata. Mesmo os momentos difíceis foram de muito aprendizado. Sofri para caramba, tenho duas cirurgias no joelhos, já tive saudades, já terminei muito relacionamento por causa das viagens. Mas não sinto que perdi nada. Acho que tudo foi um ganho muito grande".
Sobre a autora
Débora Miranda é jornalista e editora do UOL. Apaixonada por cultura. Acredita no poder transformador do esporte. Ginástica olímpica na infância. Pilates, corrida e krav maga na vida adulta. Futebol desde sempre. Corinthians até o fim.
Sobre o blog
Espaço para as histórias das mulheres no esporte, mostrando como a atividade física pode transformar vidas e o mundo. A ideia é reunir depoimentos sobre determinação, superação e empoderamento. Acima de tudo, motivar umas às outras. Vamos juntas?