Extraordinárias http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br Espaço para as histórias das mulheres no esporte, mostrando como a atividade física pode transformar vidas e o mundo Sun, 30 Aug 2020 15:17:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Final da Champions prova: mulher só precisa de boas condições de trabalho http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/08/30/final-da-champions-prova-mulher-so-precisa-de-boas-condicoes-de-trabalho/ http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/08/30/final-da-champions-prova-mulher-so-precisa-de-boas-condicoes-de-trabalho/#respond Sun, 30 Aug 2020 07:00:23 +0000 http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/?p=1269 Depois que a final da Liga dos Campeões masculina, no último domingo, registrou a maior audiência da história da TV paga brasileira desde a sua fundação, a expectativa é grande para a final feminina, que a ESPN Brasil transmite hoje, a partir das 15h. Pelo UOL Esporte Clube também será possível acompanhar o jogo.

A craque do Lyon Wendie Renard (Reprodução/Instagram)

Lyon e Wolfsburgo fazem o jogo, que deve ser disputadíssimo. Esta é a quarta vez que as duas equipes se enfrentam em uma final da Liga dos Campeões, sendo que o Lyon –maior vencedor da história do campeonato– venceu dois confrontos, e o Wolfsburgo apenas um. No total, o time francês tem seis títulos, sendo que quatro foram conquistados em sequência, nos últimos anos.

O Lyon é, atualmente, uma potência do futebol feminino –tanto que a cidade francesa foi a escolhida para sediar a final da Copa do Mundo feminina de 2019. O presidente do clube, Jean-Michel Aulas, é reconhecido por valorizar a modalidade, frequentar os jogos e dar às atletas as mesmas condições de trabalho que os homens possuem no time masculino –embora a equidade salarial ainda não seja realidade.

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Tem atletas entre as melhores do mundo, como a premiadíssima norueguesa Ada Hegerberg (que está lesionada desde o início do ano e, por isso, não vem jogando) e a francesa Wendie Renard. Mas o Wolfsburgo não fica atrás, com a supercraque Pernille Harder e sua trupe –inclusive, vale lembrar que a Alemanha ainda é o país que mais tem títulos da Champions na categoria feminina: são nove vitórias, obtidas por quatro clubes diferentes, contra seis da França.

Isso tudo só prova o que já vem sendo falado há anos: desde que recebam investimento, boas condições de trabalho, patrocínio e visibilidade, o futebol feminino pode, sim, se tornar uma grande potência em todos os sentidos: qualidade, rentabilidade e sucesso. A Copa do Mundo do ano passado deixou uma marca inesquecível nesse sentido, num movimento de crescimento que sofreu uma pausa por causa da pandemia do coronavírus, mas que tem tudo para ser retomado com força total.

E esse movimento de alta é importante também porque motiva outro crescimento, fora das quatro linhas. Aos poucos, abre cada vez mais espaço para atuação e reconhecimento de mulheres profissionais que trabalham com esporte, como jornalistas, narradoras e comentaristas. Inclusive, a transmissão da ESPN Brasil terá a narração de Renata Silveira –e a equipe ainda conta com Mariana Spinelli.

“Acho que vai ser um jogo muito bom, assim como foram os das quartas e das semis. Um jogo muito bem estudado, muito tático, com jogadoras muito boas. Há diversas atletas de seleções nacionais nas equipes. Então, a expectativa é que seja um lindo jogo de futebol, que seja muito disputado e que, claro, vença o melhor time”, afirma Renata.

Ela comenta, ainda, da importância de narrar um jogo de tanto destaque. “A gente sabe que todo o mundo que gosta de futebol feminino vai assistir a esse jogo. Então, a responsabilidade só aumenta. E o futebol feminino vem sendo, sim, um produto para o qual as emissoras estão abrindo os olhos, porque tem um público muito grande que quer acompanhar.”

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“Quero jogar futebol”: menina abusada pode encontrar acolhimento no esporte http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/08/23/quero-jogar-futebol-menina-abusada-pode-encontrar-acolhimento-no-esporte/ http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/08/23/quero-jogar-futebol-menina-abusada-pode-encontrar-acolhimento-no-esporte/#respond Sun, 23 Aug 2020 07:00:48 +0000 http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/?p=1263

Incentivar a prática esportiva na infância é essencial e um direito (Choreograph)

A frase da menina de 10 anos que passou pela interrupção de uma gravidez após ser vítima de estupro comoveu muita gente. E comigo não foi diferente. A ideia de uma pessoa tão nova enfrentar tantos terrores e, depois de tudo, sonhar com algo tão simples quanto jogar futebol revela uma resiliência que chega a doer. Joga na nossa cara a inocência e a falta de perspectiva de tantas crianças sofrendo violência de todos os tipos no Brasil –da bala perdida ao crime sexual.

Mas vai além. O desejo dessa menina em melhorar logo e jogar futebol revela também a importância do esporte na vida de tanta gente. Me arriscaria até a dizer na vida de toda gente. E especialmente das meninas e mulheres, que, por tanto tempo, encontraram impedimentos para jogar, torcer e trabalhar com o futebol.

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“Montamos uma estratégia para distrair a menina, ela estava muito abalada emocionalmente e precisávamos preservá-la. Começamos a conversar, e ela me disse que gostava de futebol, que gostava de brincar com bola. Como eu também gosto muito de futebol, foi fácil distraí-la. Falamos sobre times, sobre jogo, e ela se mostrou muito entendida, se interessou pelo assunto. Assistimos futebol em geral, filme e desenhos animados. Logo que ela saiu da sedação, disse que agora ia poder jogar bola, que estava louca pra voltar para casa para brincar de bola com o tio, que ela chama de irmão”, contou Paula Viana, enfermeira integrante da coordenação colegiada do grupo Curumim, que esteve com a criança.

O futebol, a princípio, pode ser isso mesmo: lazer, distração. Algo que entretém, ali na tela da televisão. Mas acompanhar o esporte com paixão ensina lições importantes e pode ser uma poderosa ferramenta de transformação. Na infância, especialmente, o incentivo à prática esportiva é essencial.

A Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) destaca que “o jogo e o esporte seguro e inclusivo” são direitos de toda criança e todo adolescente, assegurados na Convenção sobre os Direitos da Criança, na Constituição Federal brasileira e no Estatuto da Criança e do Adolescente. “E mais: são também estratégias para garantir outros direitos e meios poderosos de inclusão e mobilização por uma infância e adolescência mais saudável, participativa e cidadã.”

A isso chamamos de Esporte para o Desenvolvimento, um direito de todas as meninas e todos os meninos, que, além de fazer bem à saúde, contribui para melhorar a autoestima, o equilíbrio físico e psíquico, a capacidade de interação social, a afetividade, as percepções, a expressão, o raciocínio e a criatividade. Com isso, é possível melhorar o controle do corpo e a capacidade de brincar, aprender e fazer amigos.

O esporte pode também ajudar a aumentar o interesse e o desempenho na escola. Mas é importante que seja leve e divertido. A prática de esportes pode ainda ajudar a transmitir valores como respeito a regras e limites, estimular a aceitação da vitória ou da derrota, e ajudar a fortalecer as relações de solidariedade.”

Quando falamos de meninas, incentivar a prática esportiva desde cedo é ainda mais importante. Durante muito tempo, algumas modalidades –como o futebol– foram consideradas “coisa de homem”. As garotas não encontravam possibilidade de praticar essas atividades, mesmo que as adorassem e que demonstrassem talento para aquilo. Elas não eram incentivadas a correr, a ralar o joelho, a desenvolver a força e o físico e a aprender a disputa saudável. Havia uma mentalidade de que deviam se conter, “se comportar”.

Aos poucos isso está mudando. E quem está mudando são as próprias mulheres. Passamos de quatro décadas de proibição da prática do futebol para um país que está aprendendo a reconhecer o talento feminino –em campo e fora dele. Foi preciso que Marta fosse eleita seis vezes a melhor jogadora do mundo? Foi preciso que a TV começasse a contratar mulheres como comentaristas? Foi preciso que os grandes times fossem obrigados a criar e manter equipes de mulheres?

Foi. Mas tudo isso teve seu valor. E é por isso que a menina de 10 anos que foi estuprada e teve de enfrentar uma interrupção de gravidez pode, hoje, encontrar acolhimento no futebol. Por isso ela pode, sim, gostar de jogar bola, ter referências femininas no esporte que ela admira, torcer livremente e pensar em ser jogadora quando crescer. Por que não? Até (e inclusive) a possibilidade de sonhar foi amplificada pelas conquistas femininas no esporte.

É claro que ela precisa também de acompanhamento, de tratamento, de amor. Não estou dizendo que o futebol por si só vá curá-la do trauma que viveu, que vá estancar suas feridas ou que vá ser suficiente para tratar suas dores. Mas ele pode, sim, ser importante e valioso nesse processo.

Em última instância, o futebol pode ser “só” paixão. E ainda assim é capaz de transformar vidas. Aquele amor que nos leva a torcer, nos emociona, nos une a outras pessoas. A dor da derrota, que nos faz crescer e encontrar acolhimento entre os nossos. O futebol é uma grande metáfora da vida e, como o simples fato de existir, nos leva a experimentar, a aprender, a saber ganhar e perder. Nos conduz por crises e nos ensina o caminho da superação.

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Brasileira faz vaquinha para jogar nos EUA: ‘É ato político não desistir’ http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/08/16/brasileira-faz-vaquinha-para-jogar-nos-eua-e-ato-politico-nao-desistir/ http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/08/16/brasileira-faz-vaquinha-para-jogar-nos-eua-e-ato-politico-nao-desistir/#respond Sun, 16 Aug 2020 07:00:12 +0000 http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/?p=1255 Chegou um ponto na vida de Joane Ribeiro Garcia, hoje com 23 anos, em que seu amor pelo futebol virou trauma. Na infância, única menina a jogar bola no meio dos garotos, sofreu com bullying e preconceito. “Tudo era motivo. O jeito que eu me vestia, meu cabelo, como eu me comportava. Eu era muito agressiva, sentia raiva desse bullying.”

Joane está tentando arrecadar o dinheiro de que precisa para ir aos EUA (Arquivo Pessoal)

Na adolescência, decidiu sair de casa, em Jaraguá do Sul, interior de Santa Catarina, para tentar uma chance no esporte. “Joguei pelas cidades de Joinville e Blumenau, morando em alojamento. Essas foram as épocas mais difíceis. Vi de fato como funciona a falta de estrutura dos clubes brasileiros. Éramos em dez meninas, três em cada quarto, não tínhamos nenhum acompanhamento, nenhum patrocínio, fisioterapia, nutricionista, nada. Era muito complicado. Todo o mundo tinha saído de casa com esse sonho de jogar bola. Fiquei dos 16 aos 18 anos, até que falei ‘Não dá mais’.”

A decisão, no entanto, durou pouco. Hoje, Joane treina, trabalha como garçonete em uma pizzaria e batalha para conseguir realizar outro sonho: estudar e jogar bola em uma universidade dos Estados Unidos. Ela conseguiu uma bolsa parcial em uma escola na Califórnia, mas precisa de R$ 60 mil para pagar o restante dos estudos mais a moradia.

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“Era um sonho antigo. Já havia recebido uma proposta semelhante aos 15 anos para estudar e treinar lá, mas minha família é muito humilde e não tínhamos recursos financeiros.” Agora, incentivada pelos amigos, lançou uma vaquinha virtual para conseguir o dinheiro de que precisa. A mãe vem tentando, ainda sem sucesso, um empréstimo.

“Eu comecei a aplicar para bolsas nos EUA em dezembro, mandei para mais de 300 universidades. Muitas não responderam, mas recebi uma proposta muito boa para jogar na Flórida. Acontece que, com a pandemia, essa bolsa foi cortada. Mais uma frustração. Fiquei muito mal, quase desisti. Mas decidi tentar de novo. Agora consegui na Califórnia, na Westcliff University. Vou fazer acontecer.”

Além de jogar futebol, Joane vai cursar Business (semelhante a administração), com foco em esporte. “É um plano meu estudar e ocupar lugares em que hoje não tem mulheres, como federações de futebol, por exemplo. Quero poder facilitar o acesso a outras mulheres”, planeja.

Coração bate com emoção

Joane tentou por duas vezes fazer faculdade, cursou um ano de jornalismo e um ano de psicologia, com Fies (Fundo de Financiamento Estudantil). A mãe sempre a incentivou a estudar, e ela pensou em seguir uma vida acadêmica. “Mas nunca foi meu sonho nem minha vontade de fato. Estava sempre sentindo que não era o que eu queria.”

O futebol faz meu coração bater com emoção. É o que eu sinto, em essência, que eu nasci para fazer. E eu amo fazer isso. É um ato político para mim não desistir. A desigualdade ainda é muito grande, há muito preconceito. É algo que eu quero tornar mais acessível, que a gente tenha melhores salários, mais visibilidade, que a próxima geração possa ter o que eu não tive. Que as coisas melhorem. Quero que a gente tenha um reconhecimento como o dos homens.

Além de incentivar a filha a estudar, a mãe de Joane a apoiou desde pequena no esporte. “Ela sempre me incentivou. É superfeminista e sempre me deixou livre para eu gostar do que quisesse.” Quando um professor da escola aconselhou que Joane, então com 9 anos, fosse treinar em uma escolinha, pois estava se destacando entre as crianças, a mãe dela levou.

Joane diz que o machismo no futebol ainda é estrutural e levará tempo para que mude (Arquivo Pessoal)

A separação dos pais fez com que a menina se mudasse com a família para Belo Horizonte. Lá, conseguiu uma bolsa de estudos e teve sua primeira experiência em um colégio particular. “Meus horizontes se expandiram. Vi nessa época que tinha a possibilidade de ir para os EUA jogar e estudar. Lá conheci a minha primeira namorada, mas quando descobriram, cortaram minha bolsa. Era um colégio batista. Foi uma época muito difícil. Chamaram a minha mãe e tive que me assumir para ela. Eu tinha 15 anos.”

O machismo, ela diz, ainda é estrutural no futebol e levará anos para ser desconstruído.

Hoje treino com homens e, quando algum deles faz algo errado, logo já dizem: ‘Está chutando como uma garota’. Vai levar um tempo, a gente vai ter que batalhar mais e se posicionar para que isso mude de fato.

Mas as jogadores começarem a falar mais sobre preconceito, segundo ela, já é uma evolução. Joane lembra de Megan Rapinoe, craque da seleção americana e homossexual, que durante a Copa do Mundo da França, no ano passado, levantou discussões importantes ligadas não apenas ao universo LGBT, mas também à equidade.

“Minhas referências são a Megan; a Marta, pela humildade, por ser a melhor do mundo tantas vezes, pela história dela; e a Cristiane, que é uma jogadora incrível, muito precisa. O futebol masculino eu não acompanho, virou um ato político para mim. É muita desigualdade. Eu dou meu ibope para o futebol feminino, acompanho as ligas e os times.”

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Por que é normal programa de esporte sem mulher?, diz comentarista da Globo http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/08/09/por-que-e-normal-programa-de-esporte-sem-mulher-diz-comentarista-da-globo/ http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/08/09/por-que-e-normal-programa-de-esporte-sem-mulher-diz-comentarista-da-globo/#respond Sun, 09 Aug 2020 07:00:23 +0000 http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/?p=1245 Renata Mendonça diz que não se lembra de como começou sua relação com o esporte. “Parece que ele sempre esteve ali.” Contratada pela TV Globo como comentarista de futebol –posto atualmente ocupado por apenas uma mulher, a jornalista Ana Thaís Matos–, ela estreia neste domingo, acompanhando o início do Campeonato Brasileiro.

Renata Mendonça, nova comentarista de futebol da Globo (Divulgação)

O sonho de trabalhar com esporte, segundo ela, vem sendo desde o primeiro dia de faculdade. O caminho, no entanto, não foi sempre fácil. Renata conta que, por ser mulher, enfrentou a desconfiança de chefes e chegou a duvidar de que conseguisse se realizar profissionalmente. Conseguiu. A recém-conquistada vaga de comentarista é o reconhecimento desse trabalho e ela vê como uma grande responsabilidade.

“Não posso nem dizer que eu sonhei com isso, porque realmente não era algo que eu poderia me imaginar fazendo. Na minha infância inteira, nunca vi uma mulher comentando. Não se trata só de assumir um novo emprego ou uma nova função. É um espaço muito importante de se ocupar para fortalecer mais a voz das mulheres. Para que isso não pare na Ana Thaís nem na Renata. A gente quer mais.”

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Renata passou por redações como ESPN e BBC, mas virou referência por ser uma das criadoras do blog Dibradoras, do UOL Esporte, que trata do protagonismo feminino no esporte, dando grande destaque ao futebol.

“Eu cresci vendo jogos de futebol e nunca me questionei por que não tinha nenhuma mulher ali. Essa ideia de que o esporte é um espaço masculino é muito bem-aceita. E esse é o problema. Quando a gente naturaliza algo que não é natural, a gente simplesmente aceita a realidade como ela é –mesmo que não seja uma realidade justa. Por que a gente acha normal assistir a um programa de esporte que tem cinco caras e nenhuma mulher? Por que a gente não vê nenhuma mulher na televisão falando de futebol?”

Em entrevista ao Extraordinárias, Renata fala de sua trajetória, da importância de inspirar meninas –desde a infância—a se relacionarem ao esporte e de como ocupar espaços inéditos é essencial para inspirar e abrir espaço para mais mulheres apaixonadas por futebol.

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Gostar do que quisesse gostar

“A minha relação com o futebol é muito difícil dizer como começou. Eu sempre estive ligada ao esporte. E isso é um diferencial, por eu ser mulher. Acho que sou bastante sortuda e privilegiada por ter nascido em uma família que não esperou que eu cumprisse os padrões esperados para meninas. Sempre tive liberdade para gostar do que eu quisesse gostar. E por eu ter um irmão mais velho, com quem eu sempre brinquei muito, eu tinha um pouco dessa liberdade que os meninos têm de brincar de tudo. Eu jogava bola com ele, jogava vôlei. Com meu pai sempre assistia aos jogos de futebol na televisão. Enfim, é uma relação que eu não consigo lembrar o ponto de partida, parece que o esporte sempre esteve ali.”

Como é a regra do impedimento?

“A gente cresceu sendo julgada por gostar de futebol. Sempre vinham aquelas perguntas ‘como é a regra do impedimento?’ ou então ‘fale a escalação do seu time’. E o Dibradoras surgiu de uma necessidade nossa, como mulheres que gostavam de esporte, de nos sentirmos representadas pela cobertura esportiva. Começamos com um grupo de discussão no Facebook, não tínhamos a ideia de ser um grande veículo sobre esporte.

Depois disso veio um convite para fazer um podcast na rádio Central 3, porque ia ter Copa do Mundo de futebol feminino, em 2015. A ideia era que fossem só os episódios para a Copa, mas o negócio deu certo. Na época, não tinha condição de fazer um podcast para falar só de futebol feminino. Nem a CBF atualizava os resultados do Campeonato Brasileiro no site dela. Então a gente decidiu ampliar o tema para mulheres no esporte. Percebemos que os problemas e o preconceito que as mulheres sofriam no futebol eram os mesmos que elas sofriam em todas as áreas do esporte. Vimos que havia uma demanda por aquele conteúdo, que havia muitas mulheres que, como a gente, não se sentiam representadas pela cobertura esportiva.”

A gente cresceu vendo jogos onde só homens estão jogando, onde só homens estão narrando, onde só homens estão comentando. Isso automaticamente passa uma mensagem de que aquele lugar não é um lugar para mulher. Essa é a ideia que a gente queria quebrar. E isso precisa acontecer lá na infância, quando a menina ganha uma boneca e o menino ganha a bola.

Parece que somos ETs

“Toda mulher que trabalha com esporte enfrenta muitas dificuldades. A primeira é que o mundo acha que você não é capaz de estar ali. Até hoje, se eu entro no táxi e peço para o motorista botar o rádio no jogo de futebol que está rolando, eu ainda ouço ‘Nossa! Uma mulher quer ouvir futebol! Que diferente!’. Não é diferente, faz muito tempo que as mulheres gostam de futebol. Então, é um pouco exaustivo, o tempo inteiro parece que você é um ET.

E isso é uma rotina também, muitas vezes, no seu ambiente de trabalho. Tive, no início da carreira, um chefe que falou para mim: ‘Não sinto confiança para te mandar cobrir treino, para te mandar cobrir jogo de futebol’. Hoje eu consigo ver claramente que ele falou isso para mim porque eu sou mulher. Eu nunca tinha demonstrado no meu trabalho qualquer falta de conhecimento que levasse a esse questionamento. Isso quase me fez desistir. Esses percalços são muito desagradáveis, você precisa estar forte e resiliente para não deixar se abater.”

Uma conquista de todas

“Eu já participava do ‘Redação SporTV’ desde março de 2018 e, no ano passado, surgiu a oportunidade de fazer alguns pilotos [testes]. Não posso nem dizer que eu sonhei com isso, porque realmente não era uma coisa que eu poderia me imaginar fazendo. Na minha infância inteira, nunca vi uma mulher comentando.

Não se trata só de assumir um novo emprego ou uma nova função. É um espaço muito importante de se ocupar para fortalecer mais a voz das mulheres, dentro do maior veículo de comunicação do país. Para que isso não pare na Ana Thaís nem na Renata. A gente quer mais. É uma conquista que eu considero de todas.

Quando eu entrar para comentar um jogo, muitas meninas vão ver e falar: ‘Caraca, eu posso fazer isso isso!’. É uma responsabilidade enorme. Eu cresci vendo jogos de futebol e nunca me questionei por que não tinha nenhuma mulher ali. Essa ideia de que o esporte é um espaço masculino é muito bem-aceita. E esse é o problema.”

Quando a gente naturaliza algo que não é natural, a gente simplesmente aceita a realidade como ela é –mesmo que não seja uma realidade justa. Por que a gente acha normal assistir a um programa de esporte que tem cinco caras e nenhuma mulher? Por que a gente não vê nenhuma mulher na televisão falando de futebol?

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Minha Copa, meu oásis

“Cobrir a Copa do Mundo de futebol feminino da França [pelo Dibradoras] em 2019 foi a experiência mais gratificante que eu já vivi, porque conseguiu me satisfazer não só profissionalmente, mas também pessoalmente. Para mim, qualquer cobertura esportiva é o meu oásis. Sem sacanagem, eu posso ficar sem dormir todos os dias durante uma cobertura esportiva, sou vidrada nisso, é quando a minha energia está no ápice.

Tinha muitas expectativas sobre a Copa e todas elas foram absurdamente superadas. Foi incrível ver a mobilização, a quantidade de pessoas, a presença de mídia, a quantidade de crianças no estádio. Você vê muitas meninas e, para nós, que crescemos apaixonadas por esporte, é um alento ver meninas criando essa relação com o futebol.

A transmissão da Globo fez uma imensa diferença, porque foi o que mostrou o tamanho do potencial do futebol feminino. E, para a gente que estava lá, foi absolutamente incrível sentir essa energia e fazer parte dessa história. Quando a Copa do Mundo feminina acabou com a torcida gritando ‘equal pay’ no estádio, não consigo descrever o tamanho da emoção que foi viver isso. É muito significativo milhares de pessoas gritando por igualdade dentro de um estádio de futebol.”

Pausa durante a pandemia

“Não dá para dizer que a pandemia não foi um balde de água fria. A gente estava numa crescente muito grande do futebol feminino. Teve a Copa no ano passado e, neste ano, ia ter Olimpíada. Mas 2020 veio e falou: ‘Esquece todas as promessas de Ano-Novo, acabou tudo’.

Por outro lado, o futebol feminino está mais ‘acostumado’ a lidar com adversidades. Já enfrentou uma proibição, por lei, de quatro décadas. O futebol feminino nunca teve nada, ele nunca teve transmissão, nunca teve patrocínio, já sabe sobreviver sem essas coisas. E vai se reerguer, como sempre.

A gente tem hoje um cenário muito mais favorável do que era o de cinco anos atrás. Não tem nada perdido.”

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“Direito ao esporte ainda é negado às pessoas gordas”, diz influenciadora http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/08/02/direito-ao-esporte-ainda-e-negado-as-pessoas-gordas-diz-influenciadora/ http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/08/02/direito-ao-esporte-ainda-e-negado-as-pessoas-gordas-diz-influenciadora/#respond Sun, 02 Aug 2020 07:00:51 +0000 http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/?p=1236

Eu era uma criança preta e gorda, que estudava em escola particular. O único momento em que eu conseguia me destacar era quando estava jogando basquete na escola. Eu sabia que era boa, e as pessoas precisavam me respeitar.

Ellen Valias, que criou a página Atleta de Peso e incentiva pessoas gordas a praticar esportes (Reprodução/Instagram)

Ellen Valias, hoje com 39 anos, sempre foi apaixonada por esportes. Começou a jogar basquete na escola aos 9 anos influenciada pelas estrelas da NBA, como Michael Jordan e Shaquille O’Neal, além das craques brasileiras, como Janeth, Marta e Leila.

A professora de educação física de Ellen chegou a aconselhar sua mãe que a levasse para treinar em algum clube –o que não aconteceu. Na adolescência, jogou em alguns times, mas não se profissionalizou. Aos 17, largou o esporte por ter que trabalhar. “Mas eu sempre fiz academia, jogava futebol, treinava muay thai”, conta.

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O amor pela atividade física e a prática constante, no entanto, nunca fizeram com que o corpo de Ellen mudasse. “Como faz atividade e continua gorda? As pessoas não aceitam! Eu faço atividade física e continuo gorda. E não tem problema nenhum. Cada um tem um tipo de corpo. O que eu sempre quis foi quebrar o estigma de que a pessoa gorda é doente, preguiçosa, relaxada, que não se cuida. A maioria acredita nisso, é o que gera a gordofobia.”

Ellen criou, então, uma página no Instagram que se chama Atleta de Peso (@atleta_de_peso) com o objetivo de incentivar outras pessoas gordas a praticarem esportes.

“Quando te apresentam a atividade física é sempre com o objetivo de emagrecer. Está tudo errado. As motivações estão erradas. O esporte está sempre relacionado a estética, a emagrecimento, a punição, a sofrer. A gente tem que entender que o exercício físico tem vários benefícios para o corpo, não só emagrecer. Ninguém fala que é importante para o seu bem-estar. É sempre bumbum na nuca, chapar a barriga. Esporte é bem mais do que isso.”

Basquete nos parques

Um dia, passeando no parque com o marido e os filhos, viu uma quadra de basquete, e a saudade bateu forte. “Larguei a minha família e brinquei. Nunca mais parei de jogar”, lembra. Isso foi quase há uma década.

Em 2015, Ellen fundou o Rachão de Basquete Feminino. “A gente invade os parques públicos. Sempre me incomodou a ausência de mulheres nesses espaços. Nem sempre é fácil o acesso às quadras, quando a mulher chega e só tem homem jogando.”

Em suas redes sociais, conta suas experiências e discute a gordofobia –especialmente no esporte.

A atividade física é negada às pessoas gordas desde criança. A gente começa a receber a mensagem de que nosso corpo não é capaz. Se vai jogar futebol, o gordo tem que ficar no gol. Ou o gordo é ridicularizado, dizem que ele vai ser a bola. Quando tem que correr, ninguém quer escolher a criança gorda porque acha que ela vai atrapalhar.

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Segundo ela, por isso muitas crianças acabam construindo uma relação problemática com a atividade física. “Elas nunca vão gostar. Não vão querer participar da aula de educação física. Se a gente falar para as nossas crianças gordas que elas são capazes, se a gente ensinar que elas têm direito de movimentar seus corpos e dizer a elas que o esporte é lazer, isso vai ajudá-las a enfrentar a vida. É muito importante. E é um direito que é negado às pessoas gordas.”

Ela é gorda, mas joga bem

Para Ellen, a gordofobia só acabará no esporte quando for uma questão reconhecida e debatida, o que ainda não acontece. “O ambiente esportivo nem abriu essa discussão. Para ele, a pessoa gorda não existe. Nós sempre temos que provar que queremos e podemos estar ali. Dizem: ‘Ela é gorda, mas joga bem. Ela é gorda, mas… Sempre como se fosse uma superação.”

A forma como as pessoas gordas são excluídas do esporte muitas vezes está em coisas que, por outros olhos, podem ser vistas como detalhes. “Quando eu vou jogar basquete, eu sempre levo a minha camiseta, porque não tem uma que serve em mim. Vamos fazer um amistoso, o colete não me cabe. Para os outro pode ser engraçado, mas isso é gordofobia. Mais explícito que isso só você ser a única pessoa gorda jogando. Isso já mostra que está errado.”

Ellen destaca que as academias também tendem a ser lugares pouco acolhedores a quem não tem o corpo dentro do padrão de beleza estabelecido.

Qual é a referência de todo o mundo, inclusive do profissional de educação física? O corpo malhado, que dizem que é o corpo correto. Quando você chega, já acham que você quer emagrecer e te mandam para a esteira. Não há representatividade, as pessoas julgam seu corpo, é opressor. Então, isso afasta quem gostaria de fazer academia. Por isso temos que nos fortalecer, andar juntos, criar ambientes que nos acolham.

A busca por representatividade é essencial, e é isso que Ellen persegue. Ela destaca que, por ser gorda e negra, é invisibilizada duas vezes. “É preciso racializar esse debate da gordofobia, pois nós, negros, temos outra vivência. Eu tenho que gritar duas vezes mais.”

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Veja outros dois perfis de mulheres gordas que são pura inspiração na hora de realizar atividades físicas:

 

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Uma publicação compartilhada por Vanessa Joda (@vanjoda) em

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Carta de CR7 a Juju Gol: por que é importante apoiar o futebol feminino? http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/07/26/carta-de-cr7-a-juju-gol-por-que-e-importante-apoiar-o-futebol-feminino/ http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/07/26/carta-de-cr7-a-juju-gol-por-que-e-importante-apoiar-o-futebol-feminino/#respond Sun, 26 Jul 2020 07:00:38 +0000 http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/?p=1226 “Querida Julia,

Quando eu era só uma criança em uma ilha, a bola de futebol era tudo para mim. Hoje em dia, em estádios enormes, eu ainda sinto o mesmo. A bola é um convite, um sentimento. Uma conexão com o mundo.”

Juju Gol (Divulgação)

Esse é um trecho da carta escrita à mão que Cristiano Ronaldo, jogador português eleito cinco vezes o melhor do mundo, mandou para Julia Rosado, conhecida como Juju Gol. A ação fez parte de uma campanha de marketing da marca esportiva que patrocina os dois atletas, mas nem por isso teve pouca emoção.

Juju começou a jogar aos cinco anos e, aos sete, encontrou seu primeiro obstáculo: ela fazia parte do time sub-9 do clube Grau 10, mas a Federação de Futsal do Estado do Rio de Janeiro não permitia que meninas jogassem em torneios masculinos. Juju nunca deixou que as dificuldades interrompessem sua caminhada. Apaixonada pelo futebol na mesma medida em que é determinada, tornou-se, sim, a primeira menina federada a competir com meninos.

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Hoje Juju tem dez anos e se dedica integralmente ao esporte que tanto ama –e de onde vêm seus grandes ídolos. Cristiano Ronaldo sendo o primeiro da lista.

Cristiano Ronaldo para mim é o melhor do mundo. Mas não é só pelo talento com a bola nos pés, pelo jogador. É também pela pessoa que ele é, pelo pai de família, por tudo o que ele representa. Hoje ele vai querer treinar e jogar melhor do que antes. Eu busco sempre fazer isso.

A menina ainda completa: “Imagina o quanto o Cristiano Ronaldo teve que batalhar para ser cinco vezes melhor do que o Messi”.

Dá então para visualizar o significado que teve para ela receber a surpresa do ídolo. Chegaram em sua casa aqui no Brasil uma carta escrita à mão e a bola, que CR7 chamou de “conexão com o mundo”.

Muitas meninas apaixonadas por futebol crescem como Juju: tendo de lutar para conquistar espaço em um esporte ainda dominado pelo machismo e idolatrando atletas homens. Por isso, a carta de Cristiano Ronaldo para Juju tem mais valor do que apenas uma campanha de marketing. É o reconhecimento de um grande ídolo do futebol mundial ao esporte feminino. É um incentivo, uma grande inspiração para tantas meninas que, como Juju, ainda precisam enfrentar federações para poder entrar em campo –ou em quadra.

“Quando vejo a tua paixão, os teus treinos, o teu compromisso por um futuro melhor –lembro-me que tudo começa com uma bola no pé. Continua a trabalhar duro e a jogar sempre com amor”, despede-se o craque em sua mensagem.

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“Eu, como jogadora do futebol, tento me controlar dentro de campo para não chorar. Quando recebi a carta e a bola, desaprendi tudo. Me emocionei bastante. Tem um vídeo também dele falando comigo”, conta Juju.

Óbvio que não há nada errado em admirar atletas homens, mas é importante haver referências femininas no esporte. É importante que as garotas, ainda crianças, quando escolherem um esporte para praticar, saibam que há espaço e reconhecimento para elas. Que podem ser e fazer o que quiserem e o que gostarem.

Quantas meninas já desistiram do futebol, por exemplo, por não encontrarem espaço, apoio ou mesmo alguém em quem se inspirar? Um ídolo mulher.

Mas é igualmente importante que todos incentivem o esporte feminino, da mesma forma que fazem com o masculino. E por isso, talvez que mesmo sem perceber, a mensagem que Cristiano Ronaldo escreveu para Juju tem tanto valor. “Fui eu que recebi a carta, mas foi um meio para todo o mundo receber, todo o mundo que luta pelo futebol. Ele [CR7] com certeza sabe do valor do futebol feminino”, diz Juju.

Ela conta que o primeiro contato que teve com o futebol foi vendo os craques do masculino em ação.

Mas depois fui pesquisando mais e conhecendo nossos talentos femininos, como Sissi, Taffarel e Michael Jackson. O que elas fizeram não foi só por elas. Colocaram lá a sementinha. Eu e minhas amigas vamos colher esses frutos e continuar plantando.

 

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Atleta turca campeã mundial ouviu: “Deveria casar e cuidar dos filhos” http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/07/05/atleta-turca-campea-mundial-ouviu-deveria-casar-e-cuidar-dos-filhos/ http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/07/05/atleta-turca-campea-mundial-ouviu-deveria-casar-e-cuidar-dos-filhos/#respond Sun, 05 Jul 2020 07:00:59 +0000 http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/?p=1218

A atleta turca Kübra Dagli, que compete de hijab (Divulgação)

Carregar no peito a medalha de ouro de melhor do mundo e, ainda incrédula com a própria conquista, voltar para casa e ter de lidar com preconceito. Foi o que viveu a lutador de taekwondo turca Kübra Dagli.

“Quando me tornei campeã mundial, disse ‘É isso, atingi minha meta’. Todas as coisas que eu vivi anteriormente passaram diante dos meus olhos. Me senti tão feliz. Ainda não posso acreditar. Mas aí voltei para o meu país com minha medalha de ouro, li alguns comentários nas redes sociais e fiquei chocada. Uma parte das pessoas estava me congratulando, enquanto a outra parte estava dizendo: ‘E daí que se tornou campeã? Ela deveria se casar e cuidar dos filhos’.”

Veja também:

O preconceito é uma constante na vida da jovem turca. A escolha de atuar profissionalmente como lutadora nem sempre é vista com bons olhos. E ainda tem o fato de competir usando hijab, véu típico das mulheres islâmicas –permitidos em competições esportivas.

Em entrevista ao “Extraordinárias”, ela conta como vem enfrentando tudo isso e revela suas reflexões durante a pandemia do novo coronavírus. Leia abaixo.

Você começou fazendo caratê, ainda na adolescência, e depois optou pelo taekwondo. O que a atraiu para as artes marciais?

Desde criança, sempre tive muita energia. Não tinha interesse por jogos que me fizessem ficar parada. Em vez de brincar com bonecas, eu andava de bicicleta ou jogava bola. Quando estava na escola, os professores notaram que eu era enérgica e me mandavam para todas as competições, como uma atleta curinga. Eu jogava vôlei num dia, participava do atletismo no outro e jogava tênis de mesa no próximo. Mas minha grande chance surgiu porque meu pai e meu tio gerenciavam um clube de esportes. Meu pai era treinador de boxe e meu tio, de taekwondo. Essa foi a maior razão que me levou ao esporte. Eu tinha que escolher uma das duas modalidades e concluí que taekwondo se encaixava melhor à minha alma.

Quando você começou, havia muitas outras garotas treinando? Você sempre se sentiu bem-vinda no esporte?

Quando eu comecei havia poucas meninas, e eu achei que elas eram as maiores maravilhas do mundo naquele momento. “Por que não devo estar entre elas?” Nós íamos a demonstrações juntas para dar exemplo a outras meninas e sempre fomos muito bem recebidas.

Todo o mundo conhecia o taekwondo como um esporte masculino e ver meninas praticando surpreendia muito as pessoas. Isso nos fazia ainda mais felizes.

Como seus pais reagiram à sua opção de viver profissionalmente do esporte?

Minha família me apoiou muito! Para ser franca, o fato de eu me tornar uma mulher atleta e viajar por vários países os assustou no início. Mas sempre estiveram comigo e foram meus treinadores antes de eu me tornar atleta profissional. Meu pai, que batalhou para me levar a disputas e me me mandava correr todos os dias às cinco da manhã. Minha mãe, que preparava a minha refeição e lavava minhas roupas suadas. Tudo isso é muito especial para mim. Tentamos superar essa resistência através de nossas conquistas. Mas é difícil eliminar opiniões que as pessoas não querem renunciar. Talvez meu pai estivesse nesse lugar antes de a filha dele entrar no esporte. Mas eu mudei sua visão também.

Você percebe a existência de um obstáculo, muitas vezes invisível, contra as mulheres no esporte?

Sim, posso ser uma das pessoas que mais viram esse obstáculo. Especialmente porque eu pratico taekwondo de hijab. Primeiro eles diziam: “Você é uma garota, você faz taekwondo, que é um esporte masculino”. Depois, passaram a me perguntar por que eu praticava esportes quando estou usando hijab. Encontrei obstáculos de ambos os lados. O que eu não consigo entender é como eles podem criticar uma mulher por exercitar esse direito, embora todas as pessoas do mundo sejam tão devotas de sua liberdade. Acho que isso pode ter a ver com a autoestima da pessoa. Eles se sentem mal quando veem outras pessoas chegando ao sucesso que eles não foram capazes de conquistar.

A lutadora de taekwondo fala sobre enfrentar preconceitos (Divulgação)

Como se sente quando vê mulheres enfrentando o preconceito no esporte?

Einstein dizia: ‘É mais difícil quebrar o preconceito do que um átomo’. Isso é verdade e é contra isso que eu luto.

Qualquer um pode ser campeão do mundo, mas inspirar os outros e acabar com o preconceito é bem mais difícil. E acho que estou começando a conseguir isso.

Você ainda sente preconceito com suas roupas nas competições?

Em 2013-2014, competir de hijab passou a ser permitido, então entrei numa competição [usando o hijab].

Um árbitro deixou claro que ele não gostava do meu hijab e me deu 1 ponto, embora todo o resto tenha me dado 5 ou 6. Mais tarde, eu achei que era o fim, que não poderia continuar. Que eu não conseguiria ter sucesso. Nessa competição, eu cai de segundo lugar a quinto na primeira rodada e fui eliminada.

Então, eu disse para mim mesma: ‘Kübra, você precisa ser tão boa que eles não vão ser capazes de te dar pontuações baixas’. Na competição seguinte, eu fiquei em segundo lugar. E fiquei em primeiro lugar no mundial. Aquele árbitro veio tirar fotos comigo depois que a competição terminou.

O que você sentiu quando ganhou a medalha de ouro no mundial? Qual foi a reação na Turquia?

Quando me tornei campeã mundial, disse: “É isso, atingi minha meta”. Todas as coisas que eu vivi anteriormente passaram diante dos meus olhos. Me senti tão feliz, ainda não posso acreditar. Tudo foi ótimo.

Mas aí voltei para o meu país com minha medalha de ouro, li alguns comentários nas redes sociais e fiquei chocada. Uma parte das pessoas estava me congratulando, enquanto a outra parte estava dizendo: ‘E daí que se tornou campeã? Ela deveria se casar e cuidar dos filhos’.

Eu disse a mim mesma: “Kübra, o real desafio está começando agora”.

Como você tem passado esta fase de pandemia do novo coronavírus? Acredita que isso vai transformar o esporte de alguma forma?

Venho pensando muito nisso. Fiquei triste que o campeonato mundial que aconteceria na Dinamarca foi cancelado. Eu cheguei a pensar: “Já que vamos todos morrer, eu deveria parar de treinar?”. Depois, percebi que nossos objetivos são mais fortes do que a covid-19, e continuo treinando em casa.

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Existe o machismo. E existe o machismo contra mulher de jogador de futebol http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/06/28/existe-o-machismo-e-existe-o-machismo-contra-mulher-de-jogador-de-futebol/ http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/06/28/existe-o-machismo-e-existe-o-machismo-contra-mulher-de-jogador-de-futebol/#respond Sun, 28 Jun 2020 07:00:54 +0000 http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/?p=1208

Falam que eu sou interesseira.

Porque o cara tem dinheiro pode trair, não respeita a mulher.

Tem muita mulher me julgando.

As três frases acima foram retiradas da entrevista que Mallu Ohana, ex-mulher do jogador Dudu, do Palmeiras, deu na última terça-feira ao jornalista Leo Dias, colunista do portal Metrópoles. Na conversa, ela afirmou ter sido agredida pelo ex-companheiro, primeiro verbalmente e depois com murros e puxões de cabelo. Segundo ela, Dudu –já condenado anteriormente por tê-la agredido– costumava bater em sua cabeça para não deixar marcas aparentes. O jogador nega.

O jogador Dudu, do Palmeiras, e a ex-mulher dele, Mallu (Reprodução/Instagram)

O depoimento doloroso, no entanto, não foi recebido com a solidariedade e a urgência que merecia. Não se trata de condenação prévia, mas de se posicionar contra a violência doméstica de forma efetiva e definitiva. O Palmeiras soltou uma nota dizendo apenas que “acompanhará o assunto e a conclusão das investigações”. “Aproveitamos para reafirmar nosso posicionamento contrário a qualquer ato que atente contra a dignidade humana, incluindo violência e injustiça.”

Além disso, muitos torcedores –muitos mesmo!– foram às redes sociais exigir que o clube não dispensasse o jogador por causa das acusações de Mallu. Inclusive com ameaças. Sem falar nas pessoas que escolheram atacar Mallu diretamente, com mensagens semelhantes a essas citadas no início do texto.

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Se para qualquer mulher é difícil denunciar violência doméstica –por milhares de questões nutridas pelo machismo estrutural que conduz este planeta chamado Brasil–, a situação é ainda mais difícil e delicada quando a vítima é uma mulher e o agressor é um jogador de futebol. São dois lados que ocupam posições extremamente opostas na nossa sociedade.

Como orgulhoso país do futebol que somos, temos nossos atletas, especialmente os craques, como verdadeiros heróis. São eles que, dentro de campo, nos levam ao êxtase, à vitória, ao orgulho, que honram as camisas dos nossos times, que fazem com quem nós, torcedores, sejamos campeões. E, por eles, tudo vale.

Mulheres que se relacionam com jogadores de futebol, no entanto, são consideradas por muitos as Genis do país. Marias-chuteiras, interesseiras. Encaixe aí o preconceito que você conseguir lembrar. São prejulgadas e discriminadas com frequência (e, muitas vezes, por outras mulheres). Elas servem a um perfil específico que domina a mentalidade machista e preconceituosa dominante no nosso país. E por isso, quando são agredidas ou abusadas, não conseguem ser ouvidas com a solidariedade que merecem. Quando enfrentam situações de violência, nem sempre conseguem justiça. O Brasil não se indigna por essas mulheres.

Como bem questionou a jornalista Marília Ruiz em sua coluna no UOL Esportes, nesta semana: “Alguma vítima de crime qualquer é tão questionada, esmiuçada, exposta e ridicularizada como uma mulher de jogador? A suposta vítima é ela e é só dela o ônus da prova da suposta agressão. O mundo duvida dela. O senso comum, ao acompanhar as notícias e os comentários dos torcedores, é que foi ela que agrediu Dudu. Ponto final. É ela que até aqui está com imagem arranhada. Fala-se e escreve-se sobre o comportamento dela, do cuidado que ela deveria ter com os filhos do casal”.

Basta olhar para trás. Dudu é o primeiro jogador acusado de violência doméstica? A lista só cresce. Os clubes pouco fazem a respeito. No caso Jean, o São Paulo agiu rapidamente desligando o atleta, mas vale lembrar que Jean era reserva e estava longe de ser um jogador essencial para a equipe tricolor. Mas o que fazer quando o alvo da acusação é um dos craques do time, como Dudu é no Palmeiras? O futebol movimenta milhões de reais ao mês. Quem está disposto a colocar isso em risco dispensando um jogador importante porque ele agrediu a mulher?

Além disso tudo, a imprensa esportiva ainda está dominada por homens –e muitos deles ex-jogadores. Alguns inclusive acusados eles próprios de violência doméstica. Que acolhimento essa vítima pode esperar conseguir?

O machismo atinge todas as mulheres –e, em diversas ocasiões, até os homens–, mas ele age de forma distinta, de acordo com raça, status social e o contexto em que se vive. O mundo do esporte, em especial o do futebol, ainda é um dos ambientes mais hostis para a mulher, seja como profissional, seja como torcedora, seja como atleta, seja como companheira de um jogador. Ainda é um universo misógino e cruel.

Mas a participação feminina em todos os níveis só cresce. E, na mesma medida, precisa crescer a cobrança para que isso tenha um fim. A humanidade e a justiça precisam vir antes de gols. Antes de fama e dinheiro. Antes de contratos milionários. Antes de campeonatos e de troféus.

O fim da violência precisa vir antes de qualquer coisa.

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A inspiradora história da mexicana que corre 100 km de sandálias http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/06/21/a-inspiradora-historia-da-mexicana-que-correu-100-km-de-sandalias/ http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/06/21/a-inspiradora-historia-da-mexicana-que-correu-100-km-de-sandalias/#respond Sun, 21 Jun 2020 07:00:47 +0000 http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/?p=1201 Foi em um daqueles vídeos motivacionais do Facebook que eu descobri María Lorena Ramírez, uma corredora mexicana de 25 anos. Além de disputar ultramaratonas –corridas com distância maior do que os 42 quilômetros das maratonas tradicionais–, ela chamou a atenção do mundo por fazer isso usando: SAIA E SANDÁLIAS.

Lorena corre sempre de saia e sandálias (Divulgação/Netflix)

Lorena vive no município de Guachochi com a família. Seu povo é conhecido como rarámuri, que significa pés ligeiros. Vivem isolados, em meio à natureza, numa região de serras, por onde correm com a mesma desenvoltura que demonstram em provas oficiais. Foi o pai, Santiago Ramírez, quem começou a participar das corridas. E foi levando os filhos. A primeira prova em que inscreveu Lorena era uma corrida de 10 quilômetros. Ela ganhou.

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Depois disso, passou a disputar provas de 50 e 100 quilômetros. Eu sempre nutri admiração especial por pessoas que correm longas distâncias, talvez por ter uma ideia do esforço surreal que isso exige, além da disciplina e do treino necessários para conquistar a resistência e a forma física que permitem uma superação desse tamanho.

Quando vi as sandálias que Lorena usa para correr, chamadas huaraches, fiquei chocada. Com tênis, amortecedor e mil apetrechos, a gente já chega cheia de dor, tanta gente se lesiona, tem bolha nos pés. Como corre 100 quilômetros de sandália, meu Deus?

Fui pesquisar mais sobre Lorena. Com o sucesso que fez, ela ganhou páginas de alguns jornais e revistas. Foi convidada para disputar provas na Europa –a primeira mulher rarámuri a ter esse mérito. Participou até de um ensaio da revista “Vogue” mexicana.

Mas fazê-la falar é missão quase impossível. Lorena é tímida, fechada e quase sempre calada. Nas provas de que participa, tem status de celebridade. Pessoas gritam seu nome no percurso e pedem para tirar fotos na chegada. Ela segue séria, zero deslumbre, quase incomodada com o assédio.

Até a Netflix fez um documentário sobre suas conquistas, chamado “Lorena – la de Piés Ligeros”, mas, mesmo no filme, a corredora pouco fala. De toda forma, é interessante descobrir como vive esse povo que, naturalmente, pelas demandas do dia a dia, desenvolve tanto talento para a corrida.

Para ir à cidade fazer compras, Lorena e suas irmãs levam entre três e quatro horas andando. Só os homens da família puderam estudar e, para chegar à escola, caminhavam cerca de cinco horas todo dia. É responsabilidade das mulheres cuidar da casa e dos animais –o que faz com que caminhem quase 10 quilômetros diariamente. Todos os integrantes da família, quando vencem alguma prova, dividem o dinheiro com os outros e ajudam os pais.

E, apesar do orgulho pelos bons resultados e pelas grandes conquistas, Lorena não parece ambicionar mudanças drásticas em sua vida. Diz que, quando viaja, sente saudade de sua terra. Revela que já usou shorts para correr, mas sempre debaixo da saia. “Não seria a Lorena sem minha saia”, decreta. Ao ganhar um par de tênis, agradece, mas diz que provavelmente não usará. “As pessoas que usam isso estão [nas corridas] sempre atrás de mim.”

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Barrar mulheres trans no esporte deve ser uma luta das mulheres cis? http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/06/14/barrar-mulheres-trans-no-esporte-deve-ser-uma-luta-das-mulheres-cis/ http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/2020/06/14/barrar-mulheres-trans-no-esporte-deve-ser-uma-luta-das-mulheres-cis/#respond Sun, 14 Jun 2020 07:00:04 +0000 http://extraordinarias.blogosfera.uol.com.br/?p=1189 “Eu me considero uma mulher como tantas outras. Tenho muitas atribuições na vida: mãe, dona de casa, empreendedora, coach de saúde, halterofilista amadora e, agora, ativista dos direitos da mulher.”

É assim que Beth Stelzer, fundadora do movimento Save Women’s Sports (salvem o esporte feminino) se apresenta. Beth se juntou a outras mulheres cisgênero (pessoa que tem anatomia, sexo e biologia alinhados com o gênero ao qual se identifica) do esporte para lutar pelo impedimento de mulheres transexuais disputarem competições femininas.

Beth Stelzer, fundadora do movimento Save Women’s Sports (Reprodução)

“Depois de treinar por alguns anos para ganhar confiança e competir em um campeonato estadual de levantamento de peso, minha chance de brilhar foi ofuscada por manifestantes de defesa de gênero, porque não permitiram que um homem competisse em uma disputa feminina. Após o campeonato, eles perseguiram a mim e a outros competidores nas redes sociais por defender a biologia”, explica Beth.

O debate em torno da participação de atletas transgêneros em competições oficiais se acirra na mesma medida em que cresce a quantidade de pessoas que passam pela transição de gênero e que partem em busca de reconhecimento social e igualdade de oportunidades.

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Aproveitando o adiamento da Olimpíada neste ano, por causa do novo coronavírus, o Save Women’s Sports criou uma petição enviada ao COI (Comitê Olímpico Internacional), pedindo que sejam revistas as políticas com relação à participação de atletas trans em modalidades esportiva.

O comitê, que se coloca preocupado com a “inclusão, justiça e segurança de todos os atletas”, vem promovendo discussões sobre o assunto há quase duas décadas, inclusive com a participação de esportistas e de sua comissão médica. Em 2003, saiu a primeira recomendação para que atletas que tivessem passado por transição de gênero pudessem competir.

Essa orientação foi revista pelo COI diversas vezes, de forma que a decisão sempre foi a favor de abrir espaço para os atletas trans. Em 2015, houve a divulgação de algumas linhas de conduta, incluindo um nível máximo de testosterona –principal hormônio masculino– permitido no período de 12 meses antes da primeira competição oficial. Além disso, ficou definido que cirurgia de transição de gênero não seria exigida.

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Lowering your testosterone doesn’t make you a woman either. #savewomenssports

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(ACIMA, PUBLICAÇÃO REPOSTADA PELO SAVE WOMEN’S SPORTS AFIRMA: “Um homem tomando estrogênio e afirmando ser biologicamente uma mulher é tão ilusório quanto eu tomar vitamina C e dizer que agora sou uma fruta cítrica”)

A questão das mulheres trans no esporte é bem mais polêmica do que a dos homens, por causa do porte físico masculino. Mulheres trans que passaram pela transição de gênero mais tardiamente, muito depois da puberdade, desenvolveram-se fisicamente como homens. Esse é um dos principais argumentos utilizados por quem é contra a participação de mulheres trans em competições femininas. E por isso também o COI estabelece o monitoramento dos níveis de testosterona. Embora haja homens grandes e pequenos, fortes e franzinos, de fato, há vezes em que as disparidades físicas são gritantes.

O contrário já não causa tanta polêmica. Uma mulher que transicionou para homem normalmente não tem vantagens físicas com relação a seus competidores. O próprio COI permite que todos os homens trans disputem competições oficiais sem ressalvas.

No mundo do esporte, não pode haver injustiças, e as competições devem ser disputadas em condições de igualdade. Obviamente que, mesmo dentro de um mesmo gênero biológico, os corpos não são iguais. A forma como se desenvolveram também não. Nem o talento dos atletas. Existem muitas variáveis que fazem com que uma pessoa vença e outras não. Mas não deve existir entre os competidores um sentimento de injustiça ou de impossibilidade de superar adversários. Isso geraria frustração, desmotivação e abandono das atividades físicas.

A questão, no entanto, precisa ir além. A transição de gênero vem chegando a famílias do mundo todo cada vez mais cedo. Já há projetos de institutos e hospitais sérios que acompanham a transição de gênero em crianças –que desde cedo manifestam essa motivação e são acolhidas pelos pais.

Portanto, já há uma nova geração de pessoas trans que tem vivido a transição desde antes da puberdade, com bloqueadores e tratamentos que evitam que ela se desenvolva de acordo com o gênero biológico. Vem aí uma nova geração de mulheres trans –e também de atletas– que não se desenvolverão de fato como homens biológicos e não experimentarão os “benefícios físicos” da alta dosagem de testosterona tipicamente masculina. E o mundo do esporte precisa estar pronto para recebê-la.

São muitas questões a serem colocadas, pensadas e avaliadas. E o mais difícil, neste caso, é que ambos os lados têm argumentos coerentes, válidos e reais. Trata-se de um discussão delicada, que precisa ser conduzida com responsabilidade.

Na carta endereçada ao COI, o Save Women’s Sports afirma:

“Os critérios de habilitação para transgêneros criados pelo encontro consensual de 2015, que permitem que pessoas do sexo masculino que se identifiquem como mulheres penetrem nas categorias de mulheres, são inaceitáveis. Apenas reduzir o nível de testosterona por um ano não elimina as vantagens do sexo masculino sobre as atletas mulheres.

Permitir atletas do sexo masculino que se autoidentifiquem como atletas do sexo feminino é irresponsável, negligente e perigoso. Ao adotar os protocolos de 2015 para transgêneros, vocês abandonaram o dever de proteger a segurança e a integridade das mulheres e dos esportes femininos. Isso configura uma flagrante discriminação contra as mulheres em razão do sexo biológico. Machos biológicos não devem competir nos esportes femininos”.

É importante destacar que, independentemente do posicionamento que se tenha sobre a questão, ele não pode ser calcado na discriminação. Acusar preconceito não pode ser a única ferramenta de defesa das mulheres trans. Nem tampouco o preconceito deve guiar, ainda que de forma implícita, os argumentos de quem é contra a participação dessas mulheres em atividades esportivas.

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#SexNotGender #SaveWomensSports

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Chamá-las de “atletas do sexo masculino que se autoidentificam como atletas do sexo feminino” ou de “machos biológicos” só reforça comportamentos discriminatórios que todos aqueles preocupados com direitos humanos –e não apenas a comunidade LGBT– têm se esforçado para extinguir. Além de causar constrangimento e sentimento de não aceitação por parte de homens e mulheres trans.

É essencial, para uma sociedade que se preocupa com o bem-estar humano, reconhecer tudo isso. Prover liberdade, respeito e validação para que cada um viva da forma que se sentir bem e feliz. Acolher mulheres trans não configura discriminar mulheres cis. E se uma pessoa nascida biologicamente como homem se sentir mulher, é assim que ela deve ser reconhecida. E é por esse direito que nós, mulheres, TODAS AS MULHERES, temos que lutar.

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