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Débora Miranda

"As mulheres machistas estão se desconstruindo", diz comentarista do SporTV

Débora Miranda

08/09/2018 04h00

Nada caiu no colo de Ana Thaís Matos. Aficionada por esportes desde criança, a comentarista, que estreou nesta semana como integrante fixa do "Troca de Passes" (SporTV), quase virou jogadora de futebol profissional e quase não conseguiu realizar o sonho de ser jornalista. Mas Ana Thaís nunca deixou os "quases" da vida decidirem seu destino.

Ana Thaís Matos é comentarista do "Troca de Passes", do SporTV (Divulgação)

Trabalhou duro, ganhou mal, lidou com o preconceito. E tudo isso moldou a profissional competente e engajada que ela é hoje, posicionando-se em defesa da igualdade de gêneros e pregando que o esporte não pode ser alienado das questões sociais. "Ainda percebo muito mais ação de marketing do que consciência social dos clubes", afirma.

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Depois de participar como convidada do "Troca" durante a Copa do Mundo, foi escalada pelo SporTV a ficar fixa no programa. E comemora. "Me entendi muito bem com os meus companheiros de bancada, todo o mundo valorizava a opinião de todo o mundo. Também é importante trabalhar com pessoas que me tratam como jornalista, não como mulher. Isso é igualdade."

Leia, abaixo, trechos da entrevista.

De onde vem essa sua ligação forte com o esporte?

Eu morei muitos anos em Itanhaém, que é uma cidade de praia. Lá não tinha muita opção: ou você praticava esportes, ou você praticava esportes. Primeiro fiz dança, não gostei muito. Aí, abriu um campinho no meu bairro e íamos eu e uma amiga jogar futebol na rua. Depois comecei a jogar beach soccer e passei, então, para o futsal. Joguei por mais de dez anos. Quando fui para o futebol de campo, já estava um pouco mais velha, com 16 ou 17 anos, e meio desacreditada. Não deu muito certo. Mas eu sempre pratiquei esportes a vida toda.

Então você quase teve uma carreira no futebol?

Eu tentei ser jogadora! Quando surgiu a oportunidade, era a primeira geração de Sereias da Vila [time feminino do Santos], de 2001 para 2002. Quando cheguei para treinar, as meninas já tinha uma base formada, já estavam mais à frente. Migrei muito tarde, acabei não conseguindo desenvolver o futebol de campo e não deu certo. Eu desisti.

Como surgiu o desejo de ser jornalista?

O jornalismo veio mais tarde na minha vida. Eu desisti de jogar depois da Copa do Mundo de 2002. A minha família passava por alguns problemas, e eu decidi que precisava reagir, buscar algo diferente. Sempre fui meio inquieta. E aí fui passar um tempo em São Paulo. O Brasil tinha ganhado o Mundial, e eu era muito viciada em futebol. Pensei: "Preciso ver os caras passarem na Paulista! Preciso conhecer a seleção". Aí eu me mudei com esse pensamento e acabei ficando. Prestei vestibular para jornalismo e passei, mas não consegui fazer a faculdade, porque precisava pagar e minha mãe não tinha como me ajudar. Aí fui trabalhar em escritórios e fiz cursinho. Prestei vestibular de novo, fiz uma boa prova na PUC, fui muito bem no Enem e acabei conseguindo uma bolsa. Eu já tinha 23, 24 anos. Quando entrei na faculdade, conheci o pessoal que já trabalhava na área. Um amigo me convidou para fazer uma prova de estágio no jornal Lance. Só que o salário era muito pouco, e eu já pagava minhas contas, minha casa. Aí decidi esperar um pouco, juntei uma grana e acabei entrando no Lance depois.

Na Arena Corinthians, como repórter da Rádio Globo (Reprodução/Instagram)

Você participou do "Troca de Passes" durante a Copa e acabou sendo convidada para ficar. Como tem sido?

Eu já participava dos programas da SporTV desde 2015. Quando apareceu a possibilidade de fazer o "Troca" durante a Copa, era um produto novo para mim, mas que eu sabia que ia surfar bem. Mas juro que eu não sabia que ia ser o sucesso que foi nem que teria a repercussão que teve. Me entendi muito bem com os meus companheiros de bancada, todo o mundo valorizava a opinião de todo o mundo. Outra coisa que para mim foi importante foi ouvir de um dos chefes que eu tinha um jeito "seriona". Eu fiquei com aquilo na cabeça e pensei: "Poxa, eu não sou seriona". Precisei dessa blindagem para transitar no meio esportivo, mas percebi que estava passando às pessoas uma imagem que não era real. Então consegui encontrar a minha linguagem e mostrar como sou no dia a dia: espontânea, engraçada e descontraída. Isso foi inesquecível para mim. Também é importante trabalhar com pessoas que me tratam como jornalista, não como mulher. Isso é igualdade.

Como é a relação entre os jornalistas esportivos?

Eu sempre digo que o que eu encontrei de pior, no que se refere a machismo e a misoginia, foi em redação. Foi com pares. E não era nada velado, era bem explícito. Se você se destacava um pouco, sofria muito, especialmente com uma ala mais velha do jornalismo. Só que esse comportamento, de certa forma, acabou contaminando também muitos jornalistas da minha geração, que estão repetindo padrões de comportamento machistas disfarçados de outros argumentos. Claro que não é a maioria. Tem muita exceção, ainda bem! Mas vi amigas desistirem no meio do caminho. Não julgo e não critico, porque é muito difícil, mesmo. Você é colocada à prova o tempo inteiro. Isso acho que ainda vai demorar muito para mudar.

E entre as mulheres?

Essa união das mulheres, muito impulsionada pela onda feminista dos últimos anos, cresceu quando houve essa sequência de casos de assédio, beijo forçado, desrespeito nos estádios. Agora, embora as pessoas ainda sejam machistas, elas pensam melhor em relação às atitudes delas. Mas o mais legal disso tudo é essa desconstrução de mulheres machistas. Várias mulheres não identificavam o que era o machismo até perceberem que certas atitudes eram para desestabilizá-las ou diminuí-las.

Acha que o comportamento das mulheres na arquibancada também está mudando? Ainda existe muito machismo dentro das torcidas organizadas.

Eu fui torcedora de arquibancada durante muito anos, frequentei organizadas e, de fato, a maioria das torcidas tem essa questão de segregar a mulher –e fazer com que ela absorva esse discurso. Isso para mim é o mais chocante. Trabalhando em estádios, eu percebia que os piores xingamentos que eu recebia eram de mulheres. Algumas delas ainda compram esse discurso machista e não percebem que estão sendo excluídas de algo de que poderiam participar normalmente.

Você já sofreu ataques na internet também, não?

Houve um episódio em 2016 que foi uma das piores coisas que aconteceram na minha vida, foi bem pesado. Pegaram frases no meu Twitter do tempo em que eu ainda não era jornalista, coisas de 2008, 2009, falando de times, jogadores, criticando. E sofri um linchamento virtual. Por isso, em contrapartida, comecei a evitar falar de alguns assuntos. Isso estava me gerando muita dor de cabeça, muita ansiedade. Eu comento e aí fico recebendo um monte de xingamentos em rede social. Tive um período de militância, eu brinco, muito forte. E ainda, quando é válido, acho que tenho que me posicionar. De alguma forma quero plantar uma semente positiva. E eu, vindo de periferia, conhecendo todo os tipos de minoria, me sentiria muito incomodada se eu não brigasse por isso. Mas as pessoas fazem recortes totalmente equivocados do que você fala para te agredir. Então, reduzi muito a minha ação nas redes sociais.

Você diz que o esporte é uma ferramenta de inclusão social e que ele não pode ser alienado com relação às causas sociais. Você tem esperança de que isso mude em breve?

Em breve acho que não. Ainda percebo muito mais ação de marketing do que consciência social dos clubes –isso falando especificamente do futebol. Eu me referia, naquele programa, a reformas sociais, mesmo. Entender o papel da mulher, igualar condições, pensar na questão do racismo e da homofobia. Não dá para segregar algo que é agregador. Mas a curto prazo a gente ainda precisa melhorar como cidadão.

Sobre a autora

Débora Miranda é jornalista e editora do UOL. Apaixonada por cultura. Acredita no poder transformador do esporte. Ginástica olímpica na infância. Pilates, corrida e krav maga na vida adulta. Futebol desde sempre. Corinthians até o fim.

Sobre o blog

Espaço para as histórias das mulheres no esporte, mostrando como a atividade física pode transformar vidas e o mundo. A ideia é reunir depoimentos sobre determinação, superação e empoderamento. Acima de tudo, motivar umas às outras. Vamos juntas?