Usar criança para esconder sinalizador da polícia? Não!
Entre as milhares de polêmicas e situações delicadas que surgiram na final da Libertadores –que acabou não acontecendo, entre os argentinos River Plate e Boca Juniors–, uma delas se destacou para mim: o vídeo de uma mulher colando sinalizadores no corpo de uma criança com o uniforme do River. O Ministério Público pediu a prisão da mulher, que foi identificada pelas redes sociais, acusada de colocar em risco a vida do menor.
As imagens causaram debate nas redes sociais. Muita gente chocada com o comportamento da suposta mãe (não dá para ter certeza se é mesmo a mãe da criança), ela própria vestida com as cores do time argentino. A principal preocupação de todo o mundo era que sinalizadores são artefatos pirotécnicos. Ali, sendo grudados ao corpo de uma criança.
Mas houve quem defendesse o comportamento da torcedora, argumentando que carregar os sinalizadores apagados era seguro. E que, além disso, a criança precisava aprender desde cedo a "desobediência civil" no futebol.
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Questões como essas talvez não façam parte da sua vida (talvez sim), mas quem é frequentador de estádios sabe que a repressão é forte –especialmente nos setores mais populares. A revista é pesada, em homens e mulheres. Bolsos, meio dos seios e parte de baixo do sutiã. Bolsas, agasalhos, bonés.
Não é preciso dizer que até chegar a isso tivemos um longo histórico de violência. Hoje não é mais permitida a venda de bebidas alcoólicas nos espaços de jogos de futebol. Em São Paulo, as torcidas não podem levar para os jogos bandeiras que tenham mastros –já que os bambus acabaram virando armas durante tantas brigas. Todas as faixas e bandeiras são apenas imensos pedaços de tecido, que também passam por detalhada revista policial antes de entrar nos estádios.
Todo o "patrimônio" das torcidas organizadas precisa de liberação policial. E qualquer novidade precisa ser aprovada. É um jogo especial e quer levar bexigas? Precisa pedir permissão. O controle chegou a níveis quase surreais para quem não está acostumado a ele. Pintar o rosto não é bem-visto pela polícia, por uma suposta incitação à violência. Já soube da negativa de um pedido para que a torcida pudesse usar apitos, sob o argumento de que as pessoas poderiam engasgar.
Os sinalizadores também são proibidos, apesar de aparecerem com frequência nos jogos, especialmente entre torcedores que criticam o que chamam de "futebol moderno" e que fazem questão de plantar ali, na arquibancada, a sementinha do que seria o "futebol tradicional": com assiduidade –não importa se o time esteja bem ou mal no campeonato–, festas, fogos, cores, bandeiras. Quanto maior, melhor.
E assim se dá a "desobediência civil". Sinalizadores entram nos estádios escondidos sabe-se lá onde. São acesos, a torcida vibra. Enche o campo de fumaça, o árbitro para o jogo, preenche a súmula. A torcida é penalizada. A polícia aperta a revista. A repressão aumenta. É um ciclo eterno. E agora fazem parte dele as crianças.
O futebol argentino tem muita semelhança com o brasileiro. O fanatismo é grande, a rivalidade gigante. E cenas de violência frequentes. Lá também há torcida única em jogos considerados clássicos –como era o caso deste River x Boca. E a mecânica social tem muita semelhança com a do futebol –obviamente.
Como frequentadora de estádios desde a adolescência, valorizo e muito a festa na arquibancada. Sei do esforço gigante que muita gente faz para acompanhar o time do coração. Aliás, sei do amor que existe, da dedicação e de tantos sacrifícios. Já vivi isso. Por outro lado, já estive em situações de risco, já passei medo, já tive amigos feridos. E há comportamentos que, na minha concepção, não devem ter absolutamente espaço no mundo do esporte.
Mas a discussão aqui vai além. E por isso quero deixar o futebol de lado um minuto para lembrar de fevereiro deste ano, quando os jornais trouxeram imagens de crianças em uniformes escolares sendo revistadas, em uma favela da zona norte do Rio, durante uma operação conjunta entre Exército, Marinha, Bope, policiais militares e civis. Elas foram abordadas por homens armados e obrigadas a mostrar o que carregavam nas mochilas. No semblante de todas: medo.
A medida foi bastante criticada publicamente. Organizações variadas saíram em defesa das crianças. À Ponte (publicação voltada a direitos humanos, justiça e segurança pública), Fabiana Severo, presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, afirmou na época que a ação era "desproporcional e inconstitucional".
Criança não tem que ser revistada pela polícia! E caso ela se envolva em algum delito, essa aproximação tem que ser feita com a supervisão dos órgãos competentes, como o conselho tutelar. A mulher que prendia sinalizadores na cintura do menino (ou menina) antes do jogo de futebol sabia disso. O que ela queria era usar um menor de idade –que provavelmente não tem maturidade nem discernimento para compreender o que realmente estava acontecendo– a fim de burlar uma proibição. Cometer uma infração. Que seja, praticar "desobediência civil".
Para fazer apenas um questionamento raso: que nível de tensão essa criança pode ter enfrentado (pois obviamente ela sabia que estava sendo usada para fazer algo que não era correto)? E se a polícia a flagrasse com aquele tanto de sinalizador preso à cintura? Ela estaria pronta para uma situação dessa? Que memórias isso deixaria? E além disso: nós realmente queremos incitar a repressão policial contra menores de idade?
De onde eu vejo, não cabe aqui nenhum porém ou relativização. Não cabe questionar se futebol é banal, mas que isso poderia ser válido para questões mais "importantes". Não cabe o sinalizador está apagado e não há risco de vida. Não cabe o filho é dela e ela faz o que quiser com ele.
Criança não é propriedade e é obrigação de seus responsáveis garantir que ela tenha segurança e estabilidade. Ou pelo menos não colocá-la em risco. Não sujeitá-la a situações que podem deixá-la com medo ou traumatizada. Não permitir que ela sofra qualquer tipo de violência. O que tem de ser ensinado é amor ao esporte e pensamento crítico. Quem quiser burlar regras, é livre para isso. Mas que seja adulto para fazê-lo sozinho e enfrentar as consequências.
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