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Débora Miranda

Mãe leva filho a final de campeonato, no Rio: "O que ela tem na cabeça?"

Débora Miranda

19/02/2019 12h34

Louca. Irresponsável. Foram inúmeros os julgamentos que li na internet a respeito da mulher que aparece na foto publicada na primeira página do jornal O Globo desta segunda-feira. Desesperada, a jovem corre, carregando uma criança pequena nos braços, fugindo da confusão que marcou a final da Taça Guanabara entre Vasco e Fluminense, no último domingo.

Mulher corre, com criança no colo, em meio à confusão no jogo entre Vasco e Fluminense, na final da Taça Guanabara, no estádio do Maracanã (Alexandre Cassiano/Agência O Globo)

"Não consigo entender como uma mãe leva um filho tão pequeno para assistir a um jogo de futebol. Tenho muito medo da violência", dizia um comentário na rede social do próprio jornal. "No Brasil, infelizmente, uma família jamais deveria se arriscar a ir a um estádio de futebol", contemporizava outro. "Só uma demente para levar uma criança para um manicômio desses!!!", indignava-se um terceiro. E uma última questionava: "O que essa mãe tem na cabeça?".

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É fato: qualquer pessoa que acompanha de perto o mundo do futebol ou que frequenta estádios sabe que no Brasil a rivalidade entre clubes e torcidas muitas vezes já acabou em morte. Nos anos 1990, era comum que os conflitos muitas vezes acontecessem dentro dos próprios estádios. E as instituições de segurança pública, sem conseguir controlar a agressividade crescente, foram tomando as medidas que achavam necessárias para que isso não mais ocorresse. Quem perdeu? O público e o próprio futebol.

Há tempos já não temos dois times jogando na mesma cidade em horários coincidentes, pois assim evita-se que as torcidas se cruzem e eventualmente se matem. Bandeiras com mastros não são mais permitidas, pois os bambus inúmeras vezes acabaram virando armas de agressão. Álcool dentro do estádio nem pensar, pode deixar as pessoas ainda mais sensíveis e descontroladas. Até que chegamos ao ápice da torcida única em clássicos.

As medidas punitivas –e poucas preventivas– que fizeram com que hoje seja um pouco mais seguro ir ao estádio ver um jogo de futebol são, verdade seja dita, injustas e excludentes. Principalmente se pensarmos que a maior parte dos torcedores de futebol do país nunca se envolveu em um enfrentamento com outra pessoa pelo simples fato de ela torcer para um time diferente. A maioria no máximo fez uma piadinha de Facebook, ou passou raiva com uma tiração de sarro no WhatsApp. E hoje, quando seu time disputa um clássico fora de casa, o que você pode fazer é assistir à partida pela TV. Seu direito de ir ao estádio, em algumas ocasiões, já não existe mais.

Muita gente se conformou com isso. São as pessoas que, quando veem cenas de uma briga ou de uma confusão, gabam-se: "Por isso eu não vou mais ao estádio há anos". São as pessoas que abandonaram o esporte por medo da violência. São as pessoas que passaram o dia de ontem julgando a torcedora do Vasco que, assustada, fugia com a criança nos braços. Para essas pessoas, que a chamaram de louca e irresponsável, a violência está normatizada. Ela existe e foi acatada. Em vez de exigir paz, as pessoas se movem no sentido de aceitar a guerra. E o reflexo é a fuga, a busca pela proteção, a decisão de, portanto, abandonar o que ama e se fechar em casa.

Acontece que estádio não é espaço de conflito, e isso não pode ser normal. O futebol, especialmente no Brasil, é um dos fenômenos sociais mais poderosos que existem. Ele é agregador. Junta famílias em momentos de lazer, cria laços inesquecíveis entre pais, mães, filhos e filhas, reúne amigos improváveis, põe num mesmo espaço raças e classes sociais distintas em condições de igualdade. Uma arquibancada lotada é um dos espaços mais democráticos com que se pode sonhar. É sofrer em comunhão e ter a maior alegria da vida lado a lado com desconhecidos. É transformador e inesquecível.

Você não levaria seu filho para um espaço assim?

Apontar dedos para uma mãe que optou por oferecer esse tipo de vivência a seu filho pequeno e responsabilizá-la por uma situação de risco não é apenas injusto. É compactuar com a violência e reproduzi-la, como se ali, no estádio de futebol, fosse o espaço dela. E em casa fosse o nosso. É como justificar um estupro com roupas curtas. É igual achar que a mulher agredida e quase morta por um homem que conheceu na internet seja culpada por ter sido agredida. Que fique claro: as vítimas serão sempre vítimas.

Dá medo de se colocar em uma situação de risco? Muito! Com uma criança pequena nos braços? Demais. Eu não sei honestamente o que essa mãe tem na cabeça. Não a conheço e não posso falar por ela. Mas você já pensou que, se em vez de ficar em casa orgulhoso por ter abandonado os estádios de futebol você estivesse lá, poderia estar ocupando um espaço que não ficaria vago para ser tomado pela violência? Que talvez assim essa mãe tivesse a oportunidade de mostrar para seu filho o time que ela ama sendo campeão?

Já pensou que é preciso garantir o espaço das mulheres, das crianças, dos homossexuais e de todos os torcedores sem discriminação? Que é preciso que os clubes se preocupem em não instigar a agressividade contra seus adversários? Que é essencial cobrar das autoridades o fim da impunidade e não tomá-la como algo normal e cotidiano? Que há tanto ainda a ser feito e que o caminho pode não ser reproduzir comportamentos agressivos na internet?

E você? O que tem na cabeça?

Sobre a autora

Débora Miranda é jornalista e editora do UOL. Apaixonada por cultura. Acredita no poder transformador do esporte. Ginástica olímpica na infância. Pilates, corrida e krav maga na vida adulta. Futebol desde sempre. Corinthians até o fim.

Sobre o blog

Espaço para as histórias das mulheres no esporte, mostrando como a atividade física pode transformar vidas e o mundo. A ideia é reunir depoimentos sobre determinação, superação e empoderamento. Acima de tudo, motivar umas às outras. Vamos juntas?