Final da Libertadores: há que enlouquecer, mas sem perder a ternura
Existe no Brasil um fenômeno chamado Copa Libertadores da América. De quando em quando, um time nacional avança no campeonato, chega à final e pronto: está instaurada a insanidade generalizada.
Posso dizer isso com alguma propriedade, pois eu mesma já experimentei a sensação. Durante anos, tirei férias em junho, com pânico de que o Corinthians disputasse uma final de Libertadores em plena quarta-feira em algum lugar tipo o Equador e eu não conseguisse folgas suficientes no trabalho para viver esse momento histórico. Foram ANOS!
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Quando finalmente aconteceu, foi na Argentina –nem precisava de tantas folgas assim para chegar lá–, mas eu estava de férias, fui, vi e venci. Foi tudo incrível. Inesquecível. Verdade seja dita: não tem sensação igual. É de enlouquecer mesmo, é de ficar bem pirado, é de chorar, gritar e de se achar o melhor do mundo.
Pois quem está experimentando a insanidade generalizada nestes dias é a torcida do Flamengo –time que disputa hoje a fatídica final da Libertadores contra o River Plate. A empolgação dos rubro-negros vem vindo numa crescente, óbvio, com direito a dezenas de milhares de pessoas na despedida do time e a torcedor viajando 145 horas de ônibus para poder ver o jogo. Totalmente previsível.
Dito isso, preciso acrescentar: amiga torcedora e amigo torcedor, tudo nesta vida tem limite. Inclusive e principalmente a loucura. E não dá para achar que é normal desrespeito nem qualquer tipo de violência, física ou moral, por causa do futebol. Nem se você é campeão da Libertadores, nem se você é bicampeão do mundo, nem se você tem a maior pontuação da história do Brasileiro de pontos corridos, nem se você acha que manja mais de futebol do que o resto do Universo todo. Afinal, todo o mundo acha isso.
Mas parte da torcida do Flamengo se esqueceu desse princípio básico da convivência em sociedade e partiu para cima da jornalista Ana Thaís Matos ontem, na internet, depois que ela fez um comentário sobre Rafinha, no programa Seleção SporTV. Os comentaristas do canal de esportes estavam debatendo quem era melhor: o jogador do Flamengo ou Montiel, do River.
Ana Thaís Matos abriu a discussão votando em Rafinha. Mas acrescentou: "Apesar de achar que o Rafinha é um ponto de desequilíbrio em alguns momentos do time do Flamengo". André Rizek, que conduzia a discussão, estranhou e questionou: "Desequilíbrio?". Ela explicou: "Em alguns momentos em que ele foi testado, o Jorge Jesus teve que deslocar jogadores para ajudar na marcação […]. Acho que, dos poucos problemas que tem o Flamengo, a cobertura em cima do Rafinha ainda é um problema".
E foi assim que o mundo, como os flamenguistas o conhecem hoje, acabou. Essa análise foi suficiente para que Ana Thaís fosse execrada publicamente por torcedores e torcedoras. Mas não basta discordar, é preciso insultar. E o termômetro das ofensas machistas atingiu uma vez mais níveis intoleráveis e desprezíveis nas redes sociais (sempre escorado no bom e velho "Eu não sou machista, mas…").
Como bônus ainda teve o jornalista Carlos Cereto perguntando à mesma comentarista sobre o final da novela A Dona do Pedaço e mandando beijo para Paolla Oliveira.
Ana Thaís, como já está suficientemente claro para o mundo, não precisa ser defendida. Muito menos por mim. Ela não está onde está, transformando a história do jornalismo esportivo, por um acaso do destino. É inteligente e bem informada. Coloca seu ponto de vista sempre de forma respeitosa, mesmo que crítica. E, com coragem, exige o mesmo.
A minha insistência em chamar a atenção para o machismo no futebol não tem a ver com ela especificamente, mas com o machismo em si. Chega! Tem gente que, preferindo ser feliz a ter razão, segue a premissa de que futebol, política e religião é melhor não discutir. Eu, obviamente, não concordo. Estou aqui para isso mesmo. Discutir e discordar é saudável, inteligente e pode trazer outros olhares sobre o que a gente acha que tem certeza. É importante. Manifestar opiniões é importante. Poder manifestar opiniões de forma livre é importante. Ser mulher e poder manifestar opiniões de forma livre sem ser julgada simplesmente por ser mulher é importante.
Aliás, é mais do que isso. É um direito básico. Assim como torcer. Assim como poder ficar bem pirado, chorar, gritar e se achar o melhor do mundo quando seu time ganha uma Libertadores. Tá liberado enlouquecer, o futebol é muito lindo. Mas não dá para perder a ternura. Nem tampouco perder o respeito.
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